O corpo como território de experimentação, resistência e transcendência. É dessa matéria, física, simbólica e política, que se faz Um Corpo Para Habitar, documentário dirigido por Angelo Madsen Minax. O filme se debruça sobre a vida e o legado de Roland Loomis, mundialmente conhecido como Fakir Musafar, uma das figuras mais emblemáticas (e controversas) do universo das modificações corporais.
Se a simples visão de pele perfurada, mamilos alargados, ganchos atravessando músculos e corpos içados por cordas já é capaz de causar desconforto em qualquer plateia não acostumada a essas práticas, o documentário logo se encarrega de virar essa chave. A proposta aqui não é o choque gratuito nem a curiosidade sensacionalista, mas a compreensão profunda do que esses rituais representam para quem os pratica. A dor, nesse contexto, não se opõe ao prazer. Pelo contrário, ela se torna meio de acesso ao êxtase, à libertação e, em muitos casos, a uma espiritualidade que só se concretiza no atravessamento físico dos próprios limites.
Fakir, ao longo de décadas, se consolidou como uma figura paradoxal: queer, mas casado com uma mulher; funcionário de escritório de dia e adepto de rituais corporais à noite; tido como artista, guru espiritual, herege, provocador e, também, como alvo fácil dos moralismos enraizados na cultura estadunidense. E é justamente nesse entrecruzamento de identidades que o filme encontra sua maior potência.
O longa constrói sua narrativa de maneira fragmentada, cruzando entrevistas, registros de arquivo, fotos manipuladas digitalmente e trechos de programas sensacionalistas que escancararam a reação pública (geralmente pautada pelo nojo, pela reprovação e pelo espanto) diante de práticas que escapam dos padrões normativos do que entendemos como “normal”. Esse mosaico, por mais que adote uma linha cronológica que acompanha Fakir desde a infância até sua morte, nunca se contenta com a linearidade. A montagem aposta em sobreposições, distorções visuais e uma paleta de cores que remete diretamente à estética dos anos 1980, numa tentativa clara de tensionar o real, de fazer o espectador enxergar aquele corpo e aquele universo para além dos filtros da moralidade ou da exotização.
Ao centro de tudo, está a pergunta que atravessa todo o filme (e que, ironicamente, nunca encontra uma resposta única): o que leva alguém a desejar transformar seu próprio corpo dessa maneira? O que há por trás do desejo de expandir a carne, tensionar a pele, experimentar dor como ritual de passagem, de prazer ou de conexão espiritual? E, mais do que isso, por que essas escolhas seguem sendo tão incompreendidas, marginalizadas e
atacadas?
Se em mãos menos sensíveis esse material facilmente escorregaria para o espetáculo grotesco, aqui há um cuidado evidente em construir um olhar empático. Minax não trata seus personagens como aberrações a serem estudadas, mas como sujeitos complexos, atravessados por desejos, afetos e contradições. A relação entre Fakir e sua esposa, por exemplo, é construída com tanta ternura quanto seus laços com a comunidade que ajudou a formar — um grupo de pessoas que compartilha não apenas práticas, mas também um modo de existir no mundo que recusa a normatividade dos corpos e dos desejos.
É verdade que alguns pontos do filme poderiam ser mais bem desenvolvidos: certas figuras que surgem na narrativa acabam diluídas, sem espaço suficiente para que possamos compreendê-las em profundidade. Também é possível apontar que o longa, por vezes, parece se contentar em apresentar o fenômeno, deixando análises mais densas e articulações contemporâneas para o público. A escolha, no entanto, parece consciente: Um Corpo Para Habitar não quer oferecer respostas fechadas, tampouco construir um discurso explicativo ou pedagógico. Sua proposta é mais sensorial, mais próxima da experiência do que da tese.
O que resta, ao final, é a percepção de que a linha entre sagrado e profano, entre o espiritual e o erótico, entre dor e prazer, é extremamente tênue. E que talvez o maior gesto político desses corpos seja justamente existir, ocupar espaço, provocar desconforto e, acima de tudo, reivindicar o direito inegociável de serem aquilo que quiserem ser. Se o corpo é uma obra inacabada, como defende Fakir, cabe a cada um decidir de que matéria deseja esculpir a própria existência.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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