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Críticas

Cineplayers

O acúmulo de vozes dissonantes.

4,5
O braço negro ajuda o parto branco. O primeiro filme-solo de Daniela Thomas começa com essa tomada, um parto no século 19. Uma sinhá, obviamente, ajudada por uma parteira da casa; nem mãe nem bebê sobrevivem ao esforço de nascer. Nascer, viver ou morrer em 1800: qual a diferença? Daniela mostra nas sequências seguintes que são poucas. O homem branco, pai dessa família que nem existe mais, volta pra casa com o enxoval e um "amarrado" de escravos novos, semi-adquiridos. Na fila indiana que formam através das correntes e algemas nos pescoços, percebemos que a falta de comunicação será inevitável, já que vários deles não falam português. Na verdade, não falam nem uma língua conhecida por outros escravos. Mas todos fazem parte da mesma massa disforme de sociedade presente naquele período, e todos precisam das existências alheias para justificar as suas, os erros brancos e o sacrifício negro. Num plano aberto, brancos e negros esfregam o enxoval que será devidamente destruído posteriormente. Todo o sacrifício se mostra vão desde o riacho, até o furioso e amargurado rasgo do tecido.

Daniela Thomas tem um escopo a tratar nessa narrativa, parece querer abranger uma certa fúria intrínseca ao brasileiro ou a sua formação, toda já entendida hoje como errada num nível de aberração, mas a base de seu entendimento parece perdido e empilhado. Daniela não se furta a apenas um grupo ou um enfoque, ela quer olhar para lados demais, e a impressão que se tem ao final da projeção é que não apenas há um duelo de propósitos em cada personagem ou microcosmos que ela planta ali, como também um excesso de foco. Não há uma base de ponto de partida, isso em si nem se apresenta como um problema. Mas o filme parece pegar uns tipos pelo início a largar na próxima esquina, já outros parecem não ter essa mesma base mas têm um desfecho, e no outro tanto nem início nem fim. Poderia ser uma estratégia para um filme-coral, mas Vazante não se apresenta nem se forma como tal, logo ideias são apresentadas e abandonadas. Não há um conjunto, nem de apresentação de narrativa nem de mote que perpasse tantas sub-historias. Fica tudo com um aspecto vago, e negativo por isso.

Depois de anos colaborando com Walter Salles e Felipe Hirsch em seus longas e como diretora de arte de peças premiadas, Daniela está fora da zona de conforto, e visivelmente desconfortável. Talvez fosse responsável pelo artístico do todo, talvez esse projeto precisasse de um esboço mais largo de trabalho, talvez uma série de TV, talvez uma (excelente?) novela global. O caso é que não há voz para tamanha dissonância, e a incomunicabilidade que existe entre o líder africano feito escravo e a maior parte do seu universo não retrata apenas uma falta de comunicação do próprio filme, mas isso se espalha pelos setores de produção e principalmente roteiro, que não conseguem traçar um plano de abordagem conjunta para tantos sentimentos. A montagem tenta criar elipses e fazer um trabalho dito diferenciado, mas o roteiro parece falhar em fornecer dados concretos que abram um leque de possibilidades para a produção, que segue gritando para muitas direções não necessariamente afins ou convergentes; algumas coisas se encaixam, outras ficam no vácuo.

Nada disso consegue contaminar a área visual de Vazante. A fotografia em acertado preto e branco nunca esconde o espetacular figurino e a bela direção de arte, pelo contrário, há aí uma prova de congregação de ideias que o roteiro não conseguiu traduzir. Seja na câmera estática, seja na velocidade de uma fuga, é a luz inebriante de um sol escurecido que transforma todo aquele ambiente em pesar. O elenco como um todo também constrói muito bem o quadro geral, mas se Fabrício Boliveira não consegue sobreviver ao pior rascunho de personagem da produção, um agrônomo transformado em capitão do mato no estertor da histeria, a premiada Jai Baptista faz o extremo oposto em outro ponto, uma mulher escravizada por todos que passaram por ela, brancos e negros, e que transforma seu olhar num grito de desespero prestes a externar.

É estranho observar o quadro desfeito que é Vazante, porque deve ser um dos projetos recentes que mais tinham torcida e certeza quanto ao resultado final; ele é a prova viva de que não existe final enquanto não for apresentado o mesmo. Com tanto a consertar e costurar, o longa de Daniela Thomas nem consegue ser o Frankenstein que nesse momento era melhor ser, nem o objeto de estudo de um tempo que se destinou. É uma colcha de retalhos feita de outra, que consegue acertar somente no que não era responsabilidade direta de Daniela Thomas, o que talvez prove de que ela deveria acima de tudo aqui ter mantido seu esquema de co-direção, para salvar todas as áreas que ela não conseguiu, e eram cruciais.

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