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Críticas

Cineplayers

Um drama convencional de superação no esporte.

6,0

Quando escrevi sobre Um Sonho Possível (The Blind Side, 2009), filme que deu o Oscar de melhor atriz para Sandra Bullock, estranhei a transformação do personagem biografado – um rapaz negro que fez sucesso no futebol americano universitário – em coadjuvante da sua própria história. O mesmo fenômeno ocorre em O Vencedor, obra que pretende contar a vida real do pugilista ‘Irish’ Mick Ward, que aos 31 anos se tornou campeão na categoria meio-médios pela União Mundial do Boxe (segundo os especialistas no esporte, uma liga de importância secundária). À medida que o filme avança, ficamos com a sensação que, no fundo, o filme queria – se é que não o fez – retratar a história de seu irmão, o também pugilista Dick Ecklund. Mal comparando, é como se o cinema nacional colocasse o empresário Assis no centro de uma biografia de seu irmão, Ronaldinho Gaúcho. De fato, como personagem de cinema, o doido varrido Dick é bem mais interessante que Mick. Havia muito mais a se explorar nos defeitos e contradições do primeiro do que na timidez e passividade do segundo. No entanto, ao menos na intenção, O Vencedor é a história de Mick e não de Dick. Sob esse ponto de vista, chega-se à conclusão que, longe de ser um mal filme, o Vencedor não atinge plenamente seus objetivos justamente pela falta de um protagonista mais forte, mais assertivo, mais homem.

A história se passa em 1993, em Lowell, cidade próxima a Boston, quarta maior do Estado do Massachusetts. A narrativa começa nos apresentando os meio-irmãos Mick Ward (Mark Wahlberg) e Dick Eckland (Christian Bale). Mick tem 31 anos. Dick, 40. Dick é o objeto de um documentário da HBO. Segundo ele, a emissora de televisão a cabo pretende retratar sua carreira de ex-boxeador. Seu grande feito nos ringues ocorrera 14 anos antes, quando nocauteara o lendário Sugar Ray Leonard (o roteiro não doura a pílula e repete mais de uma vez que Sugar Ray não caiu não pela força dos golpes de Dick, mas simplesmente porque levou um escorregão). Na época, de tão popular, ele era conhecido como "o orgulho de Lowell". Dick está velho demais para voltar a lutar profissionalmente. Hoje ele é treinador do tímido e calado Mick. Apesar de não exibir um currículo vitorioso (Mick perdeu as ultimas  três lutas), Dick reconhece no irmão algumas virtudes a serem exploradas.

Aparentemente, um pouco da afeição dos moradores locais ainda permanece intacta. Logo na primeira sequência, vemos Dick e Mick caminhando pelas ruas de Lowell, enquanto são seguidos pelas câmeras da HBO. Dick anda livre, leve e solto. Cumprimenta a todos que vê, não importa se são idosos, mulheres, ou trabalhadores. Para algumas dessas pessoas, concede autógrafos nos antigos folhetos que anunciavam sua luta com Sugar Ray. A cidade ainda não esqueceu da sua vitoria. Já Mick aparece ao seu lado, revestindo as ruas e calçadas. Esse é o seu trabalho. Ao contrário que imaginávamos, o boxe parece não ser sua única atividade profissional. Dick abraça Mick. Ele avisa a todos que os rodeiam que seu irmão tem um luta marcada para a semana seguinte em Atlantic City. É a chance de Mick dar uma guinada em sua carreira, de conhecer a primeira vitória. Ele está pronto para se tornar o novo "orgulho de Lowell".
 
Repentinamente a câmera recua velozmente, enquanto os créditos anunciam o título do filme. O diretor Russell parece querer nos dizer: "A vida dessas duas pessoas não é tão doce quanto vocês pensam, hein! Não acreditam? Que tal uma visão mais distanciada da coisa?".

De fato, por trás daquela aparente felicidade residem vários problemas. Mick, por exemplo, é separado da sua esposa, e vê sua filha Kassie apenas nos fins de semana. A relação com sua ex-mulher é tensa, e ele nem sempre consegue exercer o seu direito de visitas nos dias agendados. Sua carreira no boxe profissional ainda não decolou. Também pudera. Seu irmão e treinador quase sempre chega atrasado aos compromissos, seja aos treinos diários, ou às viagens para fora da cidade. Todos sabem o motivo: Dick passa suas tardes com amigos, bebendo e consumindo crack. 

Além de Mick e Dick, dois outros personagens desempenham papel fundamental na história. O primeiro deles é Alice (Melissa Leo), mãe dos dois rapazes. Já cinquentona, faz o estilo da coroa gostosa. Quando entra no ginásio e ouve elogios pela sua boa forma, ela abre um sorriso de satisfação. É bom ainda poder chamar a atenção dos homens. Alice assumiu a função de empresária dos filhos. No passado, cuidou da carreira de Dick. Hoje, faz o mesmo por Mick. A outra é Charlene (Amy Adams), a sexy atendente do bar freqüentado por Mick. Charlene não agüenta mais receber ridículas gorjetas e ouvir cantadas de homens casados. Também tem um problema com a bebida. Mick é gamado nela. Ele quer convidá-la para sair. A coragem que demonstra nos ringues simplesmente desaparece nessas horas. Eventualmente ele parte para o ataque, é correspondido, e eles começam a namorar. Muito da força de O Vencedor virá da tensão entre Alice e Charlene.

Tal e qual outros filmes de esporte, o grande tema de O Vencedor não é exatamente o boxe. Ao trio de roteiristas formado por Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson, interessa discutir a complexidade das relações familiares e como elas podem nos conduzir ao mesmo tempo ao fracasso e à superação. No centro do furacão está a mãe Alice. Como qualquer mãe, o amor que nutre pelos filhos é imenso. Por eles, ela faria absolutamente tudo. Mas Alice não percebe que esse sentimento faz com que ela viva a vida deles em detrimento da sua. Conscientemente ou não, ela demonstra uma preferência por Dick. Sabe que ele tem um parafuso a menos. Mas ao invés de exercer sua autoridade, tolera pacificamente suas pisadas de bola.

Dick, por sua vez, é um vulcão em constante estado de erupção. Sua figura alongada e retilínea, e os gestos exagerados e por vezes infantis, me fizeram lembrar do Pateta, o personagem de Walt Disney. Ele sabe que sua carreira como pugilista deveria teria ido muito além. Tinha talento para isso. No entanto, cada ser humano tem a sua cota de oportunidades desperdiçadas. As que a vida lhe apresentou, Dick jogou fora. Pouco importa se ele se tornou um viciado em crack por causa das chances perdidas, ou o contrário. A carreira do irmão pode representar o acerto de contas com o passado. A um só tempo, deixaria de carregar o fardo de ser o orgulho local e, mais que isso, projetaria no sucesso do seu pupilo o seu próprio sucesso.

Já o personagem de Mick parece querer enfiar a cabeça dentro da terra e esperar que os outros resolvam seus problemas. Sua inabilidade para a solução de conflitos chega a ser irritante. Ele é contemporizador por excelência. Evita entrar em discussão.  Quer estar em paz com tudo e com todos. Essa zona de conforto tem que mudar quando ele resolve levar o pugilismo de forma mais profissional. Chega a hora da confrontação. Para quem, como Mick, se acostumou a ter a vida controlada pela mãe, e a estar à sombra do irmão, não deve ter sido fácil bater de frente com os dois. Crescer e amadurecer dá mais trabalho do que colocar os adversários na lona.

O Vencedor é dirigido por David O. Russell. É seu primeiro filme desde 2004, quando lançou o bizarro Huckabees - A Vida É uma Comédia (I Heart Huckabees, 2004). Ninguém entendeu o que ele quis dizer na época, mas a obra se tornou famosa pelos chiliques do diretor no set de filmagem (Lilly Tomlin sabe do que estou falando), muitos deles documentados em vídeos facilmente localizáveis na internet. Sua fama de encrenqueiro passou a lhe preceder e os projetos, a minguar. O roteiro de O Vencedor caiu em seu colo por um acaso. Darren Aronofsky já estava contratado pelo produtor Mark Wahlberg. Quando as filmagens já estavam para começar, um Cisne Negro (Black Swan, 2010) surgiu na vida de Aronosfky. Sem um diretor para tocar o barco, Wahlberg resolveu convidar Russell, a quem já conhecia desde Três Reis (Three Kings, 1999).

Sinceramente se eu não tivesse visto o nome de Russell nos créditos, não acreditaria que ele realmente era o diretor. O estilo e a misé-en-scene de O Vencedor estão a anos luz de seus filmes anteriores. Mesmo àqueles do início da sua carreira, quando o diretor trabalhou sob encomenda de em estúdio, em projetos mais comportados (por exemplo, Procurando Encrenca [Flirting with Disaster, 1996]), via-se um arrojo maior. Posso estar enganado, mas parece que Russell viu em O Vencedor a oportunidade de dar a volta por cima em Hollywood. Para tanto, resolveu virar um menino comportado e arriscar o mínimo possível.

O Vencedor é filmado em estilo documental. A narrativa é linear (talvez em demasia). As sequências de luta, apesar de bem ensaiadas e vistas pela ótica de uma transmissão televisiva, não trazem nada de novo - estamos mais para Rocky, um Lutador (Rocky, 1976) do que Touro Indomável (Raging Bull, 1980). A direção limpa e sem tiques aproximam O Vencedor de O Lutador, não por acaso dirigido por Aronofsky (apesar de ter largado a produção, seu nome aparecer nos créditos na condição de produtor). E, por mais estranho que pareça, os conflitos familiares que giram em torno do boxe nos remetem a Rocco e Seus Irmãos, de Visconti. As referências de Russell – conscientes ou não – são fortes. Mas um pouco mais de ousadia não faria mal.

O elenco é desigual. Christian Bale e Melissa Leo naturalmente chamam a atenção. Isso se deve pela própria característica exagerada e histriônica dos seus personagens, o que permite aos atores dar os seus shows particulares, no limite da super-representação. Bale mostra o esforço físico costumeiro, ao emagrecer vários quilos, o que acentua os olhos fundos e o assemelha a um esqueleto ambulante. Quanto a Leo, quem a viu desglamurizada em Rio Congelado (Frozen River, 2008), e a observa aqui fazendo o tipo peruona, sabe que se trata das atrizes mais versáteis do cinema americano atual. Amy Adams, por sua vez, também se sai bem no papel que serve de voz da consciência de Mick. Se todos eles são verdadeiros furacões em cena, Wahlberg é exatamente o oposto. Ok, desde os tempos de Boogie Nights - Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997), já era possível perceber suas fragilidades como ator. Mas em O Vencedor, sua passividade, seu olhar contemplativo, sua cabeça baixa, sua falta de postura, de opinião própria, fazem com que ele seja simplesmente engolido pelos colegas de elenco. À medida que o filme se desenrola, nos interessamos mais pelas tramas coadjuvantes do que pela central. É como se quiséssemos que O Vencedor se concentrasse apenas em Dick e não em Mick. Talvez não seja à toa que os pôsteres de divulgação do filme tragam a imagem de Bale em primeiro plano e não a de Wahlberg. Esse deslocamento do foco de atenção do espectador se deve muito em função da diferença das interpretações.

No final das contas, o espectador encontrará aquilo que se espera de um filme que tem o esporte como fio condutor da narrativa: superação, emoção, conflito, drama. O resultado pode frustrar os que gostariam de ver um elemento novo num terreno já demais explorado. Em O Vencedor, a opção foi pela simplicidade, pela história em primeiro lugar. Se a opção pelo convencionalismo não é em si um defeito, fica a sensação de que o filme poderia ter aproveitado melhor seus enormes potenciais.

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