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Críticas

Cineplayers

A Europa e seus filmes de formação.

6,5
Quando contou a história do jovem Antoine Doinel, que em grande parte também era a sua história, em Os Incompreendidos, François Truffaut talvez não tivesse previsto a grande influência que teria nas próximas gerações do cinema europeu e além. Centenas de filmes foram rodados até então promovendo recortes históricos, as percepções que os jovens protagonistas têm dos seus eventos e como os mesmos os impactam subjetivamente. Cria Cuervos, Machuca, O Espírito da Colméia, Boyhood, E Sua Mãe Também, O Labirinto do Fauno… Os exemplos são suficientes para compilar em livros ou exibir em mostras. A sinceridade da abordagem, os problemas tão típicos daquele período, a estrutura fragmentária… Tudo que Truffaut lançou lá atrás está sendo recriado até hoje.

É o caso de Verão 1993, que não é nem o único representante europeu do Oscar que se encaixa do gênero, fazendo companhia ao italiano A Ciambra, de Jonas Carpignano. Mas distanciando-se da decadência moral que toma as favelas italianas e da condição miserável onde vivem os imigrantes, o filme de estreia de Carla Simón como diretora recria um período muito particular da vida da diretora para transformar em material cinematográfico.

Frida é uma jovem catalã que acaba de perder os pais para o vírus do HIV no início dos anos 90 e que passa então a ser criada pelos tios em um vilarejo no interior. Órfã em uma terra estranha, lida com o luto de uma maneira toda particular, provocando os tios constantemente, provocando a prima mais nova Anna e deixando presentes para a mãe no altar de uma estátua de santa católica. 

Na abordagem de recortar pequenos momentos, pode-se observar que o filme de Simón passa muito ao longe de confrontar as questões mais incômodas do roteiro, como a paranoia que os pais de outras crianças têm de que a menina possa contaminar seus filhos com o HIV, os exames médicos frequentes e as conversas curiosas sobre a perda dos pais. Perceba-se que foram citados momentos que sim, são contemplados pela narrativa, mas mal chegam a somar cinco cenas. 

Simón também impede maiores comentários políticos explícitos em sua obra - a recente Transição Espanhola do sanguinário franquismo para a democracia, a grande taxa de vítimas da AIDS, o retorno dos espanhóis às áreas rurais, entre tantos outros elementos em voga na época. Mas não deixa de ser interessante notar a infância da próxima geração catalã, que hoje, com seus trinta anos, vive o momento em que a Catalunha tenta separar-se do resto da Espanha em meio à muita polêmica, protestos e turbulência.

A turbulência no filme é em grande parte interior. Se não temos seu drama do convívio com o fantasma da doença e da desinformação e apenas um pano de fundo do momento vivido pela população, é porque vemos o filme através dos olhos de uma criança, onde tenta imitar a mãe maquiando-se e reproduzindo suas frases típicas, tenta agradar a avó que passou boa parte da vida sob o regime fascista rezando o pai nosso e tenta, repetidamente, não aceitar a nova família. Os modelos familiares tradicionais já não contam mais quando os parentes que antes eram mais distantes - tia, tio, prima - passam representar as novas figuras maternas, paternas e fraternas.  

A câmera que Simón adotou porta objetivas quase o tempo todo, valorizando o rosto da atriz principal e seu olhar expressivo, ao mesmo tempo em que a falta de estabilidade de uma imagem tão nítida operada na mão acaba se tornando ao invés de uma “estética falha” uma “falha estética”, caindo como uma luva na representação do momento errático e confuso vivido pela protagonista. Ela não sabe onde está, ela não sabe o que fazer e muitas vezes não sabe nem para onde olhar. Enquanto corre, pula, esperneia e grita, a câmera a acompanha quase sem cortes, que existem apenas para “remendar” um filme que teve uma grande parte das sequências improvisadas pelas atrizes mirins onde a câmera acompanhava suas brincadeiras e que reforçam a sensação geral de uma vida estilhaçada cujo os cacos com as quais a protagonista ainda tem para viver perigam voltar a quebrar-se a qualquer momento.

Com esse filme criado pelo estranhamento a partir da junção de fragmentos e com poucos picos, o filme pode soar muitas vezes redundante, com muitas cenas que estendem além do necessário e que por vezes até se repetem, como as muitas peças pregadas por Frida na prima e a birra que faz para irritar os adultos. São dezenas desses momentos, que acabam por ofuscar muitas vezes quaisquer outros personagens, que acabam parecendo meramente utilitários.

Mas se há algo para destacar é a sua poderosa cena final, que sintetiza o que o filme buscou o tempo todo e termina com sabedoria de conjugar um sentimento agridoce, feliz e triste, cheio de sentido narrativo para a trama, que “encerra sem encerrar”, mas que resolve muito bem suas questões apesar de toda a gordura do seu meio, que a cada vez que avança um passo retrocede dois em sua metragem que foi bastante estendida para somar quase uma hora e quarenta. Trabalhasse mais em momentos que costurassem progressões emocionais e fosse mais enxuto, seria um filme mais poderoso. Do jeito que ficou, parece que “foge da raia” boa parte do tempo, acabando como um filme sensível que toca em questões importante e pouca coisa além disso.

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