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Críticas

Cineplayers

A monstruosidade humana segundo Bergman.

9,5

Por carregar um forte tom sociopolítico, Vergonha (Skammen, 1968) pode parecer um tanto diferente da temática favorita de Bergman – o drama interior, muitas vezes expresso em histórias desdobradas dentro de casas e apartamentos, sem grandes acontecimentos a nível regional. Vide A Hora do Lobo (Vargtimmen 1968), Persona (idem, 1966), Luz de Inverno (Nattvardgästerna, 1962), Da vida das Marionetes (Aus Dem Lebem Der Marionetten, 1980)... Além de Vergonha, um dos poucos que fogem a isso é O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, 1957) e sua viagem por dentro de uma Europa carcomida pela fé cega, doença, violência e fome.

É isto que também vemos aqui, mas com um manto contemporâneo. Se por si só, O Sétimo Selo já trazia elementos perturbadores - tortura, inquisição, moléstia, crise de fé – Vergonha é um filme que faz jus ao seu título: é um filme sobre a perda da dignidade, sobre a queda irremediável em desgraça, sobre a perda de coragem de encarar a si próprio em um reflexo – ou mesmo as pessoas próximas. O filme mais visceral de Bergman é uma sondagem psicológica absolutamente aterradora sobre um casal alienado da atual condição do país onde vivem – dois músicos que se declaram apolíticos – que terão seus valores e sua integridade profundamente baqueados por todo o filme.

Dito isto, é notável ver um Bergman desnudado e notoriamente mais fatalista – logo deixam de importar temas como ciúme e fidelidade quando toda moral passa a ser questionada. O mundo do qual seguem as regras volta-se contra eles – e testemunhamos uma enlouquecida espiral onde morrem crianças, incendeiam-se casas e tem de se matar para poder continuar vivo.

Bergman constrói um longo prólogo na relação entre os personagens de Max Von Sydow e Liv Ullmann para então desconstruir a relação com sua crueza temática sem igual. A imagem é estilizada apenas em alguns momentos; no geral, optou-se por fazer aqui uma mimese realista de suas locações naturais. Uma atmosfera rústica e cruel reina absoluta no filme. A guerra é um ambiente “onde os fracos não tem vez” – aqueles que não tem armas, que são apartidários, que são apenas civis têm de mendigar pela existência e abrir mão de todas as comodidades e a maioria das necessidades cotidianas para poderem ficar vivos por mais alguns dias.

Diferente de outros cineastas que viriam depois – como o niilismo quase punk de Stanley Kubrick em seu impiedoso Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) ou a delirante epopeia saída da mente de Coppola em Apocalypse Now (idem, 1979) - não há momentos de espetáculo bélico. Sem bombardeios, longos tiroteios, detalhes em corpos abrindo e rasgando. É a guerra em seu estado mais trágico e depressivo, que transforma em ratos desprezíveis e temíveis mesmo aqueles indivíduos que tínhamos pena no início. Como uma grave “doença moral”, a guerra corrói rapidamente convenções de certo e errado, fronteiras entre o aceitável e o condenável. Reveladora, arranca o pior dentro de cada um. O belo e opressivo preto e branco dos seus melhores filmes é substituído por um cinza frio e sujo – refletindo toda a corrupção da alma de seus personagens.

Desnecessário dizer que Vergonha seja anti-belicista, já que explicita isso desde o nome. Não é um grito missionário, mas um mergulho fundo de como o civil, ou seja, o espectador de um grande evento, passa por tudo isso. Sem soldados em campanha ou comandantes maquinando dessa vez: preocupado com o ser humano em primeiro lugar, a câmera de Bergman sempre se interessa por aqueles que são indefesos demais para poder enfrentar um mundo muito maior que eles e muito mais duro do que eles podem sequer chegar a conceber. É esse ponto de concordância que unifica Vergonha aos filmes mais tematicamente “tradicionais” ao estilo do diretor.

Vergonha é contra o espetáculo de guerra; o cinema moderno, que muito deve aos novos cinemas regionais para ter suas características percebidas (França, Alemanha, Brasil, Japão), procurava desprender sua linguagem de formulações teórico-estéticas que antes se pretendiam definitivas no nível de gramática. Bergman parecia concordar que imitar determinada estética para criticá-la não era “implodi-la” por dentro, mas sim que tal mimese de linguagem apenas resultaria em importação de valores. Daí em sua narrativa anti-convencional, com ritmo anacrônico, enquadramentos quase pictóricos – ainda que este seja uma gravura da decadência e da monstruosidade –, a linguagem cinematográfica de Bergman não se deixa dominar por nenhum código abstrato tido por “definitivo”.

Como os músicos, o diretor é apartidário; procura fazer de sua câmera um instrumento de narração singular. Os símbolos do cinema podem ser expressos de muitas maneiras (como ele faz no início de Persona) e aqui tudo é reduzido a maior simplicidade objetiva possível – e o choque psicológico de ver uma sociedade se desintegrando é bem maior. No final, a guerra fede por extrair para a superfície a podridão humana tal como ela é escondida. Sua câmera, cheia de conflitos, é contra o jogo de máscaras; faz questão de quebrá-las (conceito que levaria mais adiante ainda com ataques algo bretchianos em A Paixão de Ana [En Passion, 1969]) e filmar o que está por trás delas. Por mais condenável que certos fatos, concepções e visões revelados ao longo de suas tramas sejam, pouco interessa: o mais importante é filmar os indivíduos confusos e perdidos por trás delas. E é justamente por isso que poucos cinemas podem se proclamar tão realmente humanistas quanto os de Ingmar Bergman.

Comentários (9)

Bruno Kühl | terça-feira, 20 de Dezembro de 2011 - 20:26

Uns dos que preciso ver do Bergman, parece ser digno da nota/crítica! 😋

Luciana Pereira de Souza | segunda-feira, 26 de Dezembro de 2011 - 09:53

Está na minha lista de "a ver"... agora, então, ele subiu algumas posições! rs

Danilo Itonaga | segunda-feira, 26 de Dezembro de 2011 - 14:26

Único filme do Bergman que não gostei... E não consegui ver até o final uma pena.

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