Saltar para o conteúdo

Vida de Doleiro

(Así habló el cambista, 2019)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Representante digno da temática

6,5

Vendo Vida de Doleiro (Así habló el cambista, 2019), fica difícil não pensar em velhos e novos clássicos sobre a temática, como Wall Street - Poder e Cobiça (Wall Street, 1987), de Oliver Stone, e O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013), de Martin Scorsese. O clássico dos anos oitenta mostra em forma de drama sombrio um homem sacrificando a vida pessoal em nome do dinheiro, enquanto o sucesso de 2013 com Leonardo DiCaprio é uma caricatura grotesca sobre homens que brincam com o dinheiro alheio tal qual deuses contemporâneos, idolatrados por sua ousadia de corromper o sistema e jamais serem  punidos por conta disso. Em matéria de tom, o uruguaio Vida de Doleiro parece ser uma espécie de intermediário entre os dois.

Em seu novo filme, Federico Veiroj (Vida Útil) encena a vida do cambista Humberto Brause (Daniel Hendler) como "a tragédia de um homem ridículo", pegando emprestado o título de um filme de Bernardo Bertolucci: o homem começa como um economista ambicioso em uma corretora, apaixonado por Gundrun (Dolores Fonzi), filha do chefe. É a única figura em sua vida que parece dar qualquer tipo de conforto, e depois nem isso: à medida que entra fundo na lavagem de dinheiro usado para comprar a Câmara dos Deputados durante o Regime Militar, conhece no processo empresários e homens públicos da Argentina e Brasil que querem uma espécie de mecanismo importante de impérios ilegais sob a fachada de negócios legítimos.

O filme, com uma narração em off que ajuda a entender a história elipsada, jamais chega perto de um caráter cínico que nem outros; Brause parece nunca ter uma defesa ou justificativa para seus atos, nem mesmo arrancar prazer daquilo. Pelo contrário, cresce longe dos filhos, sem paixão da mulher, intimidado por achacadores e manipulado por corruptos com dinheiro. Por que motivo ele continua? Esse mistério nunca é tornado uma questão principal, com a resposta parecendo ser, constantemente, que se Brause não o fizer, outros o farão. 

Vida de Doleiro ambiciona um alto valor de produção, reconstruindo um Uruguai das antigas, com Veiroj encenando tudo com um senso classicista, abusando de tons dourados e crepusculares, com aparência saturada que evocam filmes da época, mais especificamente, início da década de setenta. Um limite entre o realismo e a fantasia muito característico de uma época que o filme persegue sem tornar isso uma bandeira, talvez mais por propósito de reconstituição que qualquer outra coisa.

O filme se mostra corajoso ao mostrar um protagonista corrompendo progressivamente a própria alma até alcançar um final amargo. Não há exatamente uma consequência trágica para o protagonista além do que ele próprio plantou para si; não é um "conto moral" para mostrar que aquilo é errado, como o fez Stone, mas como andar no limite da lei, quebrando-a e experimentando e seus limites podem afetar de maneira pessoal a nível de despersonalização; nessa jornada psicológica, o personagem é cada vez menos ele mesmo - se é que já foi alguma coisa além de um negociador desonesto.

É com o se o filme concentrasse no seu ato final tudo o que escorre através de filmes como Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984) e O Irlandês (The Irishman, 2019); discutir o vazio existencial de homens que fazem o dinheiro girar em paraísos fiscais como o Uruguai o era para o Brasil e a Argentina na década de 70 também pode ser usado para pensar em casos recentes, como os Panama Papers e a Odebrecht enquadrados em A Lavanderia (The Laundromat, 2019). Mas se no filme de Steven Sodebergh há uma espécie de monopólio da virtude (pessoas ruins fazem coisas ruins com o dinheiro de pessoas boas), aqui não há pedido de desculpas, o monólogo não reflete nada.

Vida de Doleiro é um tanto maior que deveria, com alguma hora soando redundante e podendo ter chegado ao final bem antes. Eventualmente entendemos que o personagem principal não tem limites e que suas relações interpessoais estão alteradas definitivamente pelos seus atos, sem possibilidade de volta. Porém, o filme continua repetindo o mesmo ponto, indelevelmente, deixando questões que chega a levantar um tanto inexploradas, com o filme pela ótica da vida conjugal. Gudrun é protagonista de duas cenas mais importantes sobre a infidelidade do marido, mas de resto é quase um "coro grego" que comenta as escolhas do protagonista de maneira ressentida.

Um filme sobre o mercado financeiro latinoamericano não é algo que se vê todo dia, pois não é sempre que se lembra  o envolvimento do mercado financeiro, capitalistas industriais e a elite no geral em momentos pivotais de nossa história — os filmes cinemanovistas São Paulo, Sociedade Anônima (idem, 1965), de Luís Sérgio Person, e O Desafio (idem, 1965), de Paulo César Saraceni, figuravam até então como um dos poucos exemplares. Mas longe da iconoclastia incendiária daqueles tempos, o filme em questão como uma obra "cinemão", calcada em drama de cartilha em todas as frentes, como uma oportunidade para o público conhecer um período particular da América do Sul que só passou a ser mais revisto pelas novas gerações recentemente.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

Comentários (0)

Faça login para comentar.