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Críticas

Cineplayers

Um filme político de horror em torno de monstros e fantasmas.

8,5

Obra-prima é o modo como muitos cinéfilos enchem a boca para se referirem a vários filmes do passado, e que é uma definição cada vez mais escassa para filmes contemporâneos. Vencer, o mais recente trabalho de Marco Bellocchio, se não é propriamente uma, então é quase. O diretor se impõe há algum tempo como o maior cineasta italiano da atualidade, ativo desde a década de 1960 e geralmente se apresentando como dono de uma obra contestadora (não confundir com engajamento ou cinema de tese, longe disso), ao mesmo tempo reflexiva e auto-interrogativa.

A principio, Vincere é sobre como a História está sempre nos pregando uma trapaça, no sentido de que, muitas vezes, é a partir de figuras idealistas que surgem os seres mais monstruosos. O filme de Bellocchio escapa da camisa de força das cinebiografias mais vulgares, por primeiro realçar Benito Mussolini como um indivíduo de carne e osso para mais adiante apresentá-lo como figura mitológica, contando a sua ascensão como líder sindical e revolucionário que esquece e passa por cima de seus ideais socialistas e companheiros de partido, além de repudiar a mulher que o ama. Vincere, na verdade, é sobre essa determinada mulher, Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno), que venera e ao mesmo tempo odeia o ditador italiano, acompanhando a sua trajetória desde o princípio.

Trata-se de um estudo acerca do surgimento e transformação de um homem em mito − numa alteração não apenas psicológica, mas sobretudo física (o que não se refere a um simples e natural envelhecimento, e sim uma mutação que vai tornando a sua imagem mais ameaçadora e monstruosa). Protagonista da primeira metade do filme, após o momento em que Mussolini (interpretado quando jovem por um Filippo Timi cheio de garra e fúria) finalmente entra para os livros de História, ele passa a aparecer em Vincere somente em cenas de arquivo, bustos ou fotografias. O filme é transformado então pelo cineasta numa forma bastante particular de pesadelo, de maneira que a história política pareça se transmutar num estranho filme de horror. O desempenho do ator que interpreta Mussolini é soberbo num filme em que tudo parece levar a algum tipo de deformação, apresentando o ditador italiano como verdadeira figura mutante de horror. Com o tempo, Vincere acaba se tornando um filme sobre a loucura, o abandono e o desespero, assumindo o ponto de vista de Ida Dalser, que adorou o futuro ditador e a quem entregou todo o seu patrimônio, e que por sua vez a anulou como se ela nunca tivesse existido, como um fantasma (ou menos que um fantasma, como a própria Ida se define). O filme de Bellocchio é exatamente sobre isso, um filme político de horror em torno de monstros e fantasmas.

Em dado momento, Vincere sutilmente desperta a dúvida de quem seria o verdadeiro louco: a personagem que insiste em se declarar esposa do ditador, mesmo não tendo mais vínculo algum com ele e sequer um documento que comprove o matrimônio; ou o próprio Mussolini, que em seus discursos inflamados exalta uma vontade férrea de reviver o antigo Império Romano, o que conta com a adesão imediata de grande parte da população italiana? É um retrato estarrecedor do que foi a Itália no período entre as duas grandes guerras, e mais ainda, da convicção e da fé finalmente destruídas de uma obstinada e intrépida mulher. Vale destacar ainda a cena da mesa com os médicos ou a sequência em que Ida Dalser assiste O Garoto, de Charles Chaplin, e se reconhece no drama visto na tela, num contraplano de arrancar ágrimas.

Poderia ser contra-producente e alguns podem até considerar que Vincere soe desequilibrado demais, mas me parece que muito de sua força reside justamente nesse desequilíbrio, que é conseqüência de uma opção intelectual, estética, ao dividir o filme em duas partes distintas, a primeira mais cheia de energia, veloz e agressiva (ao modo do personagem central desse entretrecho, o jovem Mussolini), e a segunda mais contida e sufocada, reproduzindo o cerceamento a que mãe e filho são submetidos ao serem trancafiados em um hospício. É a força da História esmagando a pequenez do indivíduo, em um filme movido pelas pulsões corporais mais brutas dos seus personagens. Vincere é também um formidável exercício formalista, uma das demonstrações mais intensas de um trabalho de mise-en-scéne nos últimos tempos.

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