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Críticas

Cineplayers

Quando toca o disquinho verde...

8,5

O novo longa de Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor (2012), vem colecionando elogios e prêmios por onde tem passado, inclusive ganhando reconhecimento internacional. A elegante narrativa, o retrato fiel e abrangente da classe média brasileira e a atmosfera de horror construída apenas com base em elementos simples de cena, como o som do extracampo influenciando a ação de dentro do enquadramento, formam um conjunto de características ímpares e bastante eficientes, além de curiosas. Obviamente, foram necessários anos para que o cineasta atingisse a maturidade encontrada neste trabalho, e se olharmos para trás podemos enxergar vários “ensaios” dele em obras como Eletrodoméstica (2005), onde já se nota essa habilidade quase documental em retratar a vida cotidiana da classe média dos recifenses; e também em Vinil Verde (2004), de onde O Som ao Redor herda seu clima de horror, mesmo com nada de concretamente ameaçador em cena.

Vinil Verde é narrado em tom de conto infantil, com direito a um narrador oficial, “era uma vez...”, e certa lição no fim da história. Sua montagem remete àquela eternizada por La Jetée (1962), que constrói toda a narrativa visual por meio de uma sequencia de fotografias estáticas, indo contra o princípio primário do cinema como imagem em movimento, como se fossem fragmentos de memórias. Poucas vezes esse recurso é utilizado com um fim realmente digno que não seja apenas um atrativo vazio e gratuito. Aqui ele colabora para complementar a atmosfera de um conto infantil, como as páginas ilustradas de um livro sendo passadas conforme o narrador nos vai relatando os acontecimentos da vida de Mãe e Filha (não só o grau de parentesco das personagens, como também os “nomes” delas – forma encontrada pelo diretor para universalizar os conflitos). As duas moram juntas em um apartamento no Recife, onde vivem uma rotina de carinho e afeto, até o dia em que Mãe presenteia Filha com um toca discos e uma coleção de disquinhos de vinil coloridos. A única advertência é que Filha não deve, sob nenhuma hipótese, ouvir o disco de cor verde.

A história do “fruto proibido” é velha e sempre muito utilizada por gerações e gerações de pais que ensinam aos filhos sobre a importância da obediência. Claro, do outro lado da moeda fica a clara vontade infantil de se meter onde não deve, ainda mais depois de uma proibição. O horror começa a partir do momento em que Filha decide ouvir justamente o disquinho verde, antes de qualquer outro, não ligando para as consequências desse ato sobre a vida de Mãe, que a cada dia volta para casa do trabalho com uma parte do corpo amputada. Por meio de uma trama tão simples, Kleber constrói um dos curtas de horror mais tensos do cinema brasileiro, ao mesmo tempo em que discute sutilmente sobre a relação entre pais e filhos. De certa forma, retrata os medos, inseguranças e paranoias que os filhos herdam dos pais inconscientemente, a maneira como o papel de ambos vão se invertendo conforme os pais envelhecem (quando Filha começa a virar Mãe, a partir do momento em que esta se torna incapaz de realizar tarefas cotidianas), a influência do ambiente físico sobre as relações familiares, além do mistério muitas vezes presente na relação entre um pai e um filho, em que nem sempre um procura pelo bem do outro, como deveria ser.

Há muito de Vinil Verde em O Som ao Redor, principalmente na construção de um universo que reflete o nosso, onde Kleber salienta os pequenos detalhes, potencializa alguma constante cotidiana e acaba por reverter isso em um argumento assustador, de um típico filme de horror. O resultado no público é um estranho misto de identificação com a realidade do filme e súbito medo diante de algo antes considerado banal. O diretor parece enxergar na realidade do brasileiro médio material suficiente para fundamentar um conto de horror, apenas por redimensionar os pequenos medos, as mesquinharias, as diminutas falhas de caráter, as rusgas diárias, as intrigas banais rotineiras, em terríveis tormentos para a alma. Basta entender essa ideia e pensar como ele para ver que mesmo na nossa rotina particular, quando olhamos bem, há motivo o suficiente para nos enxergamos subitamente em uma estranha história de terror.

Comentários (11)

Heitor Romero | sexta-feira, 30 de Agosto de 2013 - 14:22

Torres, acho mto boa a ideia de um artigo assim, não desiste não rs

Bruno Cavalcanti | sexta-feira, 30 de Agosto de 2013 - 16:39

Muito boa crítica, a cena com as luvas verdes ainda me perturba 😲

Juliana Carneiro Leão Ramos | sexta-feira, 30 de Agosto de 2013 - 23:16

Que legal a crítica sobre o Vinil Verde!
Que filme pra dar susto! Um filme da minha adolescência que tenho com muito apreso. Ouso a dizer que o cinema brasileiro nunca foi tão bom em suspense como neste curta.
Muito bom!😁

Alexandre Baquero Lima | quarta-feira, 23 de Dezembro de 2015 - 00:42

Esse curta é excelente. O tom infantil é porque o enredo do curta é tirado de uma fábula infantil russa. E para aproveitar a caracterização literária, eu diria que a tensão, o mistério e a estranheza do curta são elementos que configuram o gênero "fantástico", em vez do gênero "horror". Um fantástico que é utilizado de forma excelente por KMF para retratar a realidade social, como apontado na crítica, muito boa por sinal.

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