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Vitalina Varela

(Vitalina Varela, 2019)
8,3
Média
15 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A mulher do fim do mundo

9,5

De um corredor na escuridão, sai um comboio silencioso, uma marcha fúnebre a guardar a alma do marido de Vitalina, uma caboverdiana que virá a Portugal reencontrar o corpo do homem que não vê há 40 anos. Esse mesmo cortejo se movimenta como os próprios fantasmas de uma terra em ruínas, que o Homem implodiiu; caberá a Mulher a incumbência não-outorgada de dominar aquele espaço, reconstruir seu cenário particular, e um país que não é dela. Dessa reunião de espectros, nasce mais uma obra portentosa de Pedro Costa, onde Vitalina e Ventura voltam a povoar o imaginário imagético que ele constroi há mais de 20 anos.

Como todo filme de fantasmas, 'Vitalina Varela' se vale do 'chiaroscuro' habitual de Costa pra montar sua narrativa. Como se a observar novos desdobramentos desse grupo de seres à margem da vida, o diretor reaproveita sua estética e insere seus atores num ambiente constante de sombras e penumbras, que realça o caráter soturno propositalmente utilizado para rechear a atmosfera prestes a desmoronar.

A chegada em cena de Vitalina é carregada de simbolismos, como se a própria voltasse de sua Cabo Verde notada como um limbo aquático, ao mesmo tempo destroçada e pronta para se reerguer. Ela se arrasta por cômodos em pedaços, servindo pra que reafirme sua força de outrora ("construí minha casa com minhas próprias mãos") ao guardar uma fortaleza em seu semblante. Sua presença imponente aos poucos vibra com a certeza de que representa o que aqueles homens não conseguem ser: uma liderança nata capaz de reerguer sua pequena fatia social.

Dentre as frestas abertas por onde entram os raros feixes de luz, a fé é colocada em cheque entre os atores fetiche de Costa, inclusive encarcerando Ventura em dois personagens, o padre dilacerado e o corpo vagando nas trevas em busca de salvação. O espelhamento possível possibilitado dessa análise é o lugar onde se depreendem um do outro, espírito e 'cavalo', e onde esse homem pode habitar em caráter dúbio. O que já se foi e o que encaminha essa passagem, dispostos no mesmo rosto. Como se Vitalina pudesse ainda encarar o marido com a qual não tem mais contato através daquele homem que sobreviveu aos escombros da Europa moderna.

Soterrados pelo luto que o Velho Mundo legou, Pedro Costa refaz sua trajetória extremamente masculina no cinema ao instituir uma mulher imigrante à reconstrução urgente do espaço habitado, espaço esse na qual o Estado se conformou em caminhar sobre os próprios restos. Será a voz feminina dissonante ao estado das coisas que empreenderá o vento da mudança, ainda que em face ao sofrimento extremo pelo qual passa e sob o qual reflete, ainda em vista da decripitude clara que se abate sobre corpos e cenários, que se erguerá o Novo. A imagem final é a síntese de um filme amedrontador em cada esquina mostrada, mas que compreende a necessidade de negar a prostração diante do medo. Da renovação, da revolução, do futuro. Mesmo que esse futuro seja o fim.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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