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Críticas

Cineplayers

A violência melancólica de Lynne Ramsay.

8,0
Reconhecida por ter dirigido para o cinema a adaptação do best-seller Precisamos Falar Sobre o Kevin, Lynne Ramsay construiu um cinema sazonal, chegando ao quarto filme longa-metragem em 18 anos, todos com diferença entre si de ao menos três anos, e também por um cinema particularmente indigesto, sempre abordando temáticas pesadas. Não é diferente com Você Nunca Esteve Realmente Aqui; seis anos depois de abordar a psicopatia de um jovem, a câmera seca, muitas vezes vazia, foca dessa vez a vida do clássico arquétipo do assassino de aluguel.

Baseado na novela de mesmo nome escrita pelo autor e showrunner da série Bored To Death Jonathan Ames, o filme enfoca de forma bastante íntima a vida de Joe, contratado para resgatar menores de idade sequestradas por exploradores sexuais, entre elas a filha de um senador. Mas como de praxe nas histórias sobre homens que enfrentam algo muito maior que eles, os criminosos influentes na sociedade civil não demorarão a responder. 

Talvez o principal diferencial de Você Nunca Esteve Realmente Aqui é sua total e absoluta falta de paixão. A violência não é catártica, pelo contrário: é distante, perturbadora, chocante, enfocada por enquadramentos de corpo inteiro, através de câmeras de vídeo, sem recursos estilísticos como closes, câmera lenta ou trilha sonora emocionante. É tudo muito seco, o tempo do filme é esvaziado e apático, bem como seu protagonista, sempre contemplativo e indiferente. Só conseguimos extrair pouca coisa, como as lembranças traumáticas do seu passado familiar abusivo e os horrores vistos no tempo que serviu no exército ou seus delírios terrivelmente reais. 

Joaquin Phoenix é a alma do filme nesse sentido. É através da sua performance que o filme evoca empatia por seu personagem, seu tormento emocional, o peso das escolhas que fez, o sangue culpado e inocente que direta e indiretamente tem nas mãos. Mas essa falta de paixão, esse vazio, não quer dizer que seja um filme esvaziado, mas sim que escapa dos típicos vícios dos sociológicos dramões europeus onde homem é produto do meio e a violência é fruto das circunstâncias. 

A questão aqui é mais interior. Não é uma análise de um mundo pervertido pela distorção de seus valores (como acontece na perversidade cíclica de um Miss Violence, para nos atermos a um exemplo), mas sim o estudo de um personagem melancólico. Dono de si, capaz da violência extrema mas também da empatia. Da execução sumária, mas também do arrependimento. Phoenix é claro em sua performance: Joe não está satisfeito, não obtém qualquer vitória pessoal em sua missão e o filme, por conseguinte, não sobe de tom.

Um grande exemplo é a cena onde Joe fere mortalmente um assassino de aluguel que invadiu sua casa e o interroga deitando ao seu lado, olhando em seus olhos, sussurrando a pergunta enquanto o inimigo se esvai em sangue. É demorado e é linear, não tem apenas a força de uma martelada na face (analogia óbvia com a técnica violenta de preferência do protagonista), mas também com o que segue depois, suas difíceis consequências, o reconhecimento do corpo no chão como algo que estava vivo minutos antes.

Você Nunca Esteve Realmente Aqui ganhou melhor roteiro e ator principal em Cannes, o que gerou um burburinho que fez com que o filme fosse comparado inclusive a clássicos do cinema de crime como Taxi Driver. Ainda que seja uma comparação exagerada, é verdade (pois o filme de Scorsese e Schrader está mais para justamente a busca de uma catarse que justifique o mundo podre que o protagonista Travis Bickle enxerga), há certa identificação no tom de protagonista “dostoievskiano”, por assim dizer: como na obra do russo Fiodór Dostoiévski, os personagens são usualmente homens de caráter anacrônico e desajustado, cujo sentimento interno tão avassalador deságua tanto na encenação da brutalidade quanto na contemplação da melancolia. A sondagem psicológica também está lá, ainda que bem menos verbalizada que no clássico dos anos 70.

Mais uma vez, assim como aconteceu com o dolorido vencedor do Oscar de Roteiro Original Manchester à Beira-Mar, a Amazon entrega uma aposta ousada, muito capaz de dividir opiniões, sim, mas que carrega em si o mérito de produções um tanto diferentes das produções espetaculares e ao mesmo tempo um tanto convencionais de hoje em dia. E outra vez, Lynne Ramsay atrai sobre si os holofotes como um dos destaques do ano em erigir um filme no mínimo diferente a se conferir, abordando temas desagradáveis da forma inusitada, feia e letárgica que a lançou para a fama.

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