Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A obra de Julie Verner é assassinada em nome de um filme que não é engraçado, não empolga e não tem nada de inovador.

3,0

Júlio Verne deve estar se contorcendo todo, seja lá onde estiver. Da sua obra original, restaram apenas o título e algumas pequenas referências para embalar um filme quase novo e que, infelizmente, não funciona ao seu propósito. Não diria nem que é uma releitura do clássico A Volta ao Mundo em 80 Dias escrito em 1873, e sim funciona mais como uma sátira que acabou não dando certo. Se ela ao menos fosse engraçada, poderia passar despercebida, mas o resultado final ficou tão ruim que até mesmo descolar umas indicações ao Framboesa de Ouro 2005, famosa premiação que dá um suspeito prêmio aos piores do ano, o filme conseguiu.

Phileas Fogg (Steve Coogan) é um jovem inventor londrino que entra na famosa aposta de dar a volta ao mundo em exatos oitenta dias, após Lorde Kelvin, o diretor da Academia Real de Ciências na qual Fogg faz parte, tirar uma onda com a sua cara devido às suas invenções. Decidido a provar o seu valor e ganhar o devido espaço que merece na Academia, Fogg desafia o Lorde com a aposta, mesmo que ele próprio não tenha tanta certeza se irá conseguir ou não cumpri-la. Não entrarei nas questões de diferença entre o Fogg original e este completamente novo (ele não era um inventor querendo provar coisa alguma), senão seria até covardia. Centralizarei todo o meu texto no que o filme é, e não no que ele deveria ou deixou de ser.

O grande problema é que este Fogg, simplesmente, não convence. Ao mesmo tempo que parece ser um grande gênio, fica difícil de acreditar que ele caia em alguns truques muito primários daqueles que entram em seu caminho durante sua jornada. Com o seu jeito medroso e apelando para comédias físicas, o personagem não funciona como protagonista e, em raros casos de diálogos inteligentes, mal funciona como comediante. Se não fosse a belíssima interpretação de Coogan, diria que o personagem seria inteiramente insuportável.

Só que Fogg não foi o único a ter sua personalidade completamente alterada. Passepartout ganhou uma importância infinitamente maior na viagem, deixou de ser francês para se tornar chinês e a sub-trama do assalto ao Banco da Inglaterra se tornou ainda mais importante do que a volta ao mundo em si – o que é um erro bastante grave. Tudo isso porque quem interpreta Passepartout no filme é ninguém menos que Jackie Chan, o astro oriental que ganhou Hollywood com seu carisma e peripécias. Mas não espere nada de novo. Aqui tudo é infinitamente mais normal e sem graça do que o que Jackie está acostumado a mostrar em seus filmes (exceto por O Terno de 2 Bilhões de Dólares, onde tudo é, infelizmente, feito através de efeitos; qual a graça de se ver um filme do Jackie Chan todo em efeitos especiais, quando a graça é justamente ver o que ele consegue fazer de verdade?).

O erro poderia até ter uma importância menor caso a sub-trama (agora principal) funcionasse, o que não é o caso. Ela é extremamente forçada e ridícula, fica difícil de acreditar que deixaram uma história tão interessante de lado para priorizar esta. Claro que os combates que são gerados a partir da perseguição oriental a Jackie são interessantes, mas não o suficientes para esquecermos o quão ruim ficou a viagem que dá nome ao filme. Simplesmente não dá para ter uma boa dimensão da volta ao mundo. A proeza fica parecendo ridícula de fácil, já que aparecem diversos atrasos em seus caminhos, mas que parecem não alterar em nada o número de dias na viagem final. O que eu quero dizer é que eles não são resolvidos, e sim ignorados pelo roteiro.

Duas das principais sequências da obra original de 1956, que sinceramente esperava um show de Jackie Chan ao retratá-las em sua versão do filme, foram totalmente ignoradas. Uma magnífica tourada na Espanha e uma grande homenagem aos faroestes norte-americanos eram, sem a menor sombra de dúvidas, excelentes oportunidades para Jackie conseguir fazer algo bacana e, de quebra, inovador. Mas não. A Espanha sequer é visitada nesta versão e os EUA são incrivelmente mal aproveitados. Há uma ridícula cena onde os norte-americanos insistem em reafirmar que são os inventores do avião, no meio do deserto do Oeste, e mais um combate em um galpão estranhamente iluminado com holofotes (estamos no final do século XIX), em que a única coisa de interessante são os fragmentos espalhados, que depois formariam a famosa Estátua da Liberdade (presente dos franceses em 1866).

Cécile de France vem direto do excepcional Albergue Espanhol para pagar um mico junto com o restante do elenco, fazendo um desnecessário interesse romântico com Fogg, que nada adiciona ao resultado final. Ela está lá apenas para o filme ser mais fofinho, e só. Outro personagem que teve sua importância modificada foi o Inspetor Fix, aqui interpretado de maneira convencional por Ewen Bremner. O personagem se limita a torrar o saco de Fogg, mas de maneira bem menos convincente, já que se livram sempre facilmente de sua presença. Sua interpretação se limita a fazer caretas quando as clichês pancadas em seus ‘países baixos’ acontecem, algo que me irrita imensamente. Será que ainda existe gente que não percebeu que fazer careta não é engraçado e, muito menos, uma forma de fazer comédia?

Assim como o original, nesta obra existem uma diversidade incrível de participações especiais. Só que ao contrário de nomes como Frank Sinatra ou Charles Coburn, você terá que agüentar algumas gracinhas de pessoas como Owen Wilson, Luke Wilson e do irritante Rob Schneider. Até mesmo o atual governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, faz uma ponta como um príncipe turco, em seu último papel antes de ser eleito. O resultado? Uma indicação para pior ator coadjuvante no hilário Framboesa de Ouro. Fica até desconsertante comparar tais níveis de participações...

Já que a sensação de viagem, que era um dos grandes pontos altos do original, foi deixada de lado nesta versão, apostando numa falha comédia, não espere encontrar belíssimas paisagens. Exceto a China, todos os outros locais são fechados demais para se ver alguma coisa ou cheios de efeitos para soarem naturais (não estou referindo às passagens de localização, propositadamente falsas, e sim cenas como a viagem de trem onde Jackie revela à Monique porquê está viajando com Fogg). Para piorar tudo, em certos momentos, há típicas lições de moral levadas a sério demais para serem ignoradas. É algo totalmente piegas e clichê, típicas frases formadas para fazer as pessoas se sentirem melhor.

Já deu para perceber que A Volta ao Mundo em 80 Dias falha em todos os aspectos que tentou inovar. Se a viagem em si não funciona, a comédia raramente consegue fazer rir (a melhor cena é a que a mãe de Jackie Chan toma um porre), as locações são insatisfatórias, as lições de moral soam artificiais, o nome de Júlio Verne é usado apenas para atrair as pessoas aos cinemas, o que sobra de bom no filme, afinal? Para quem é fã de Jackie Chan, as proezas de sempre. Se você é um daqueles que ri com qualquer besteira, pode ser que se divirta também. Mas para qualquer um que seja um tiquinho de nada mais exigente, a coisa complica de vez.

Agora só nos resta torcer para um novo A Hora do Rush aparecer, urgentemente, na carreira de Jackie Chan.

Comentários (0)

Faça login para comentar.