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Críticas

Cineplayers

Pode ser irregular como cinema, mas segue como relevante documento histórico de um período revelador da história norte-americana.

6,5

Os críticos de Oliver Stone podem falar o que quiserem, mas ninguém em sã consciência pode afirmar que ele não é corajoso. Um dos diretores mais polêmicos do final do século passado, Stone sempre teve coragem de abordar, em seus filmes, temas relevantes e até espinhosos: dos horrores da guerra (Platoon [idem, 1986] e Nascido em 4 de Julho [Born on the Fourth of July, 1989]), passando pela glorificação da violência (Assassinos por Natureza [Natural Born Killers, 1994]) e chegando até a conspirações governamentais (Nixon [idem, 1995] e JFK – A Pergunta que Não Quer Calar [JFK, 1991]), o cineasta jamais fugiu de uma boa briga, construindo uma filmografia que, se peca na qualidade alguns momentos, funciona sempre como válido ponto de partida para reflexões sobre alguns dos mais importantes momentos da história recente dos Estados Unidos.

E talvez Wall Street – Poder e Cobiça (Wall Street, 1987) seja o principal representante desta maneira de analisar o cinema de Oliver Stone. Em sua essência, não se trata de um grande filme, mas funciona muito bem como documento histórico sobre a mentalidade dos Estados Unidos em meados dos anos oitenta. O roteiro, escrito pelo próprio Stone e por Stan Weisler, tem início em 1985, apresentando o jovem corretor de ações Bud Fox. Extremamente ambicioso, Fox tenta se aproximar de um dos maiores “tubarões” do mercado da bolsa, o milionário Gordon Gekko. Pouco a pouco, o iniciante começa a ganhar a confiança de Gekko, desempenhando uma série de serviços para o veterano. À medida em que enche os bolsos de dinheiro e descobre os benefícios dessa vida, Fox começa a perceber os caminhos nem sempre honestos de Gekko, enquanto questiona a sua própria moralidade.

Existem filmes que sobrevivem à força do tempo graças à sua qualidade e outros que o fazem por representarem o espírito de uma época. Wall Street, ainda que tenha suas qualidades, pertence ao segundo grupo, capturando a forma de pensar norte-americana da década de oitenta de forma louvável. Stone construiu uma história sobre os chamados “yuppies”, os jovens que inverteram os valores defendidos nos anos sessenta e setenta ao buscarem incessantemente as conquistas materiais, onde a aparência e aquilo que se possui são os conceitos pelos quais se mede alguém. Desde os primeiros minutos de Wall Street, Stone deixa claro que é exatamente este ponto de mudança que deseja retratar em seu filme: quando o personagem de Charlie Sheen diz ao seu pai que “não há mais nobreza na pobreza”, o cineasta afirma que, na visão deste personagem-símbolo daquela era, a luta pela igualdade e pelos direitos deu lugar à corrida constante pelo sucesso profissional.
 
Wall Street pode parecer estranho para alguns em função de seus imensos celulares e precários computadores, mas é interessante analisar como esta nova percepção de vida surgiu exatamente em um momento de total renovação tecnológica. Na lógica onde o “ter” é mais importante que o “ser”, as relações humanas são deixadas de lado nessa interminável jornada rumo ao topo – e tal “desumanização” também não deixa de ser resultado desta explosão de tecnologia e modernidade. Neste sentido, os anos oitenta surgem como um período crucial da cultura norte-americana, os primeiros passos da formação de uma consciência que perdura ainda hoje, onde a busca pela pujança material é o grande objetivo de vida. Não importa ter o bastante, porque nunca é o bastante. Esta questão, aliás, é bem apresentada por Stone em uma cena na qual Bud Fox confronta Gordon Gekko e pergunta diretamente: “Quanto dinheiro é suficiente?”

Não é por acaso, então, que, em uma cultura de competitividade acirrada onde uma conta bancária modesta é sinal de fracasso, uma frase de Wall Street tenha entrado para a história do cinema: “Ganância é bom”. Proferida por Gekko em frente à diretoria de uma empresa que pretende comprar, a fala é a síntese de todo o seu discurso – e, de certa forma, do período abordado pelo filme –, no qual os mais poderosos devem engolir os mais fracos para o seu próprio prazer, em uma versão corporativa da “lei do mais forte”. Para Gekko, não importa quanto dinheiro ele possui, mas sim a consciência de ele pode enriquecer ainda mais. Saber disso é motivação suficiente para seguir em seu caminho, mesmo que seja passando por cima de quem está em sua frente.

E Stone é extremamente bem-sucedido ao capturar em celulóide a essência dessa época. Há em Wall Street um extremo cuidado com os detalhes, como nos cabelos milimetricamente penteados, nos ternos bem-acabados, na confusão da firma na qual Fox trabalha ou na opulência do escritório de Gekko. Tudo parece ser bem pensado e planejado para que o filme mostre a efervescência desse momento da história. O mesmo, aliás, pode ser dito da câmera de Stone, irrequieta e quase sempre em movimento, transmitindo o sentimento de urgência não somente da jornada de Bud Fox como também de toda a sociedade de excessos da época. Stone também merece elogios pelo ritmo que imprime à obra: Wall Street é um filme ágil, beneficiado por uma montagem eficiente e pela velocidade com a qual os atores reproduzem os diálogos.

Falando nisso, é no elenco que repousa boa parte da força de Wall Street, mais especificamente em sua dupla de protagonistas. Tanto Charlie Sheen quanto Michael Douglas têm à disposição personagens fortes e interessantes, que passam longe da superficialidade, e aproveitam muito bem o material. Talvez seja possível afirmar que Sheen tem a melhor interpretação de sua carreira no papel de Bud Fox: normalmente inexpressivo, o ator compõe o personagem de forma completa, inclusive jamais deixando qualquer dúvida na plateia sobre a mudança de atitude pela qual Fox passa no terceiro ato. Sheen, além disso, tem um grande momento para si em uma cena na qual o seu personagem caminha pelo escritório humilhado: a câmera de Stone jamais foge do rosto do ator, enquanto ele tenta reprimir um choro que inevitavelmente acaba por escapar.

O bom trabalho de Sheen, aliás, é extremamente vital ao filme, principalmente porque o Gordon Gekko de Michael Douglas possui uma presença avassaladora. Wall Street se constrói sobre a dinâmica do relacionamento entre os dois personagens e Sheen não desaparece frente ao papel da carreira de Douglas. Nas mãos de Douglas, Gekko surge em uma combinação perfeita de carisma, auto-confiança, arrogância e desdém, como se tudo fosse possível para ele e nada pudesse atrapalhar a conquista de seus objetivos. O ator expressa cada fala como se realmente acreditasse naquilo que está falando e sua naturalidade ao tratar de assuntos relacionados à milhões de dólares chega até a ser divertida. Por este papel, Douglas ganhou o primeiro – e, até agora, único – Oscar de sua carreira como ator.

No entanto, mesmo com seus acertos, Wall Street traz uma história simples, até mesmo óbvia em sua estrutura. A jornada de Fox e Gekko jamais foge do clássico conto do aprendiz e do mestre, aqui com certos toques faustianos. O que realmente acaba prejudicando o filme, porém, é a constante utilização de termos do mercado de ações. Ainda que inevitável diante da proposta da obra, as diversas referências a esse mundo “hermético” à maioria dos mortais acaba por se tornar, por vezes, tediosa. O espectador não-iniciado certamente terá dificuldades em acompanhar todos as detalhes da compra e venda de ações e as artimanhas utilizadas por Gekko, o que inevitavelmente reduz a apreciação da obra.

Da mesma forma, Stone não consegue escapar do artificialismo de algumas subtramas, especialmente o romance entre Bud Fox e a personagem de Daryl Hannah. Além de ser abordada de forma rápida, a péssima atuação de Hannah contribui para que a aproximação entre o casal jamais convença a plateia, tornando-se apenas um empecilho frente à muito mais interessante história principal. Enquanto isso, o roteiro ainda apresenta alguns momentos despropositados e que carecem de lógica: quando Fox se questiona “Quem eu sou?”, por exemplo, ainda não há nada na história que torne a cena verossímil – até o momento, o personagem está claramente satisfeito por estar vivendo a vida que leva.

Assim, mesmo com a bem-estabelecida dinâmica entre os dois protagonistas, Wall Street se revela uma obra inconsistente em termos puramente cinematográficos. Por outro lado, é um filme que não irá desaparecer tão cedo, continuando como referência e ponto de estudo sobre um determinado período da história norte-americana. E, considerando a sua trajetória como cineasta, Oliver Stone provavelmente não pediria muito mais do que isso.

 

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