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Críticas

Cineplayers

Um documentário mediano, uma mulher incrível.

7,0

Grande parte do valor emocional de What Happened, Miss Simone?, documentário lançado em Sundance em Janeiro e distribuído pelo Netflix desde Junho desse ano, está em seu objeto: a vida pessoal e a trajetória artística de um dos nomes mais relevantes da música do século XX. Por ser a performer icônica que é, a trajetória de Nina Simone reflete momentos singulares da história e da mitologia americana, especialmente àquela que diz respeito aos efervescentes anos de 1960.

Dos pequenos recitais na Carolina do Norte, passando pelas boates noturnas de Atlantic City até estourar como cantora pop, Nina Simone percorre com aparente naturalidade os espaços aos quais ela não parece muito bem pertencer. Ainda jovem, entra em contato com as ideias de luta dos ativistas negros de década de 1960 e sua postura parece mudar, primeiramente pouco, radicalizando cada vez mais, culminando na decisão de, a partir de certo momento da sua carreira, dedicar-se exclusivamente ao que ela chama de “música dos direitos civis”.

Dessa radicalização, vem a sua libertação, mas também suas maiores perdas: Simone termina por abandonar a família, a carreira, os amigos e, acima de tudo, os Estados Unidos, refugiando-se na Libéria - uma nação cuja origem se relaciona diretamente com a libertação dos escravos negros americanos. Ao dar as costas para tudo isso, a cantora é capaz de abandonar o relacionamento abusivo com o marido e a carreira que vinha sendo-lhe nociva nos últimos anos, muito em razão do status de persona non grata que seu ativismo lhe rendeu. Mas, diante da necessidade de obter sustento, Simone reata sua carreira, tocando especialmente na Europa.

Com a assistência de amigos, ela termina por descobrir que, durante toda a vida, fora aflingida pelo transtorno bipolar, patologia responsável pelas ondas constantes de depressão e agressividade que demonstrara durante as décadas anteriores. Frente ao diagnóstico, Nina Simone deve escolher a cada dia entre tomar sua medicação, administrando suas crises emocionais, ou não tomar medicação alguma, ficando sob o total controle de suas capacidades motoras.

Se as últimas décadas da vida de Simone revelam essa escolha diária entre controle emocional ou controle motor, fazendo com que seus concertos adquirissem um ar de imprevisibilidade (principalmente para quem tinha conhecimento de sua condição), e o filme certamente não ocupa muito tempo com essa etapa de sua vida, os primeiros anos são especialmente notáveis por serem responsáveis pela construção do ícone.

O documentário de Liz Garbus desenvolve-se no sentido de mostrar que o ativismo floresceu em Nina Simone, é verdade, mas estimulado pelo contato com poetas, escritores, músicos e ativistas contemporâneos da cantora. A própria Simone confessa, numa das gravações reveladas no filme, que em muitos momentos de sua vida ela não havia percebido o racismo lançado contra ela, e a lembrança desses momentos “ricochetearam” no seu espírito anos mais tarde, provendo-lhe forças para que assumisse uma postura de mais autoridade diante do contexto ao qual estava inserida.

Trabalha-se, no documentário, principalmente com a tese de que Nina Simone sacrificou o sucesso comercial em prol do ativismo. Embora a própria cantora tenha declarado anos mais tarde que, em vista desse sacrifício comercial, em uma segunda chance não se radicalizaria tanto no ativismo, a narrativa de Garbus faz questão de mostrar o valor do legado que Simone deixou. As gravações em vídeos de alguns de seus concertos são especialmente admiráveis, revelando a transformação que seu ato sofreu ao longo dos anos: inicialmente contido, embora já belíssimo, numa estrutura de piano e voz, mas que depois se tornaria uma experiência vibrante e intensa, embalada pelo demônio do jazz e pela alma das danças afroamericanas: no auge de sua carreira, Simone não se limitava a interpretar suas canções, mas ficava de pé, contorsia-se no palco, urrava, dançava, gemia, transformando o palmo numa esperiência proto-religiosa que fazia menção às raízes negras de sua pessoa, e de seu público.

Embora o documentário de Garbus revele grandes pedaços da vida privada de Simone, como um arqueólogo secular escovando terra da superfície de um ídolo divino, o mérito da obra reside na pessoa que Nina Simone foi, e no legado que ela deixou. Embora as imagens sejam impressionantes, a música seja de bom gosto e a edição seja dotada de um ritmo bastante adequado, o filme segue a linha de um documentário tradicional, meramente informativo, quase pragmático. Flerta com ambições maiores, é verdade, como quando narra a morte de Martin Luther King Jr., as fotos da época, as imagens de Nina Simone dizendo que “eles estão nos matando um por um, não estão?” e finalmente a imagem de um jovem negro num protesto com uma placa dizendo “É melhor vocês matarem todos os negros”. Diante de casos recentes, assustadores e abertos de racismo no mundo todo, mas também nos Estados Unidos, é interessante que os ecos dessa época de revelia ousada e radical reverberem em nossos dias. Até para que o sacríficio de Simone permaneça não sendo em vão.

Comentários (1)

Vinícius Aranha | segunda-feira, 03 de Agosto de 2015 - 15:15

Não é um documentário criativo e etc, mas conseguiram explorar bem a força das imagens que tinham em mãos. Pra mim já dá pra considerar um ótimo filme assim.

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