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Wolfwalkers

(Wolfwalkers, 2020)
7,8
Média
48 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

De volta a um mundo de poucas dimensões

10,0

Sempre estabeleço como um momento muito inicial do meu fascínio pelo cinema os créditos de abertura da animação da Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 1951). As cartelas dos créditos apresentavam imagens estáticas dos personagens e de pequenos elementos do cenário, este que se torna, ali, um conjunto de padrões visuais que vão se espalhando pelo fundo da imagem. Essa fascinação por algo tão simples talvez fosse porque aquela sequência sintetizava tudo o que me afetava como cinema (ou, como eu chamava na época, “desenho animado”): o artifício, a articulação entre planos bidimensionais distintos, a música como companhia e introdução àquele universo mágico.

E foi isso que encontrei quando comecei a ver Wolfwalkers (idem, 2020), já no início do filme: os contornos de natureza da abertura de Bambi (idem, 1942), os padrões visuais de Pinóquio (Pinocchio, 1940), os backgrounds urbanos da Paris de O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame, 1996) e aquele encanto dos créditos de Alice no País das Maravilhas. Essas são algumas aparições e estéticas que compuseram minha relação com o cinema, mas que desapareceram da animação contemporânea, viciada no suposto realismo da tridimensionalidade, temerosa diante dos artifícios e da simplicidade narrativa que caracterizavam os principais títulos do gênero no passado. Percebi, então, que estava reencontrando em Wolfwalkers um carinho imenso, profundo e íntimo pela animação tradicional.

Esse lamento nostálgico não quer dizer que Wolfwalkers refaça um desses filmes. Dizer isso seria um erro tanto de desconsideração da sua grande originalidade quanto de ingenuidade diante de suas ferramentas de produção (sem dúvida, afinal, a animação gráfica compõe a visualidade do filme, mesmo que tenhamos essa impressão de bidimensionalidade). O que os diretores Tomm Moore e Ross Stewart fazem aqui é acenar para a história do gênero, mas transformando-o no presente.

Isso não é estranho para Tomm Moore, que tem trabalhado em recriações do cinema de animação desde Uma Viagem ao Mundo das Fábulas (The Secret of Kells, 2009), que dirige junto com Nora Twomey. Seus filmes sempre retornam ao imaginário das lendas irlandesas, adaptando-as com uma perspectiva muito fiel ao presente - um método de adaptação de contos orais que foi aperfeiçoado pela Disney ainda nos anos 1950. Wolfwalkers não é diferente: a lenda, sobre transformação, sobre um vínculo mágico que une humanos e não humanos, é aqui atravessada por uma narrativa sobre aproximações solidárias em circunstâncias de diferenças radicais, sobre opressão política e subversão.

Wolfwalkers também não é sua lição de vida pronta para o consumo. Os valores do filme são articulados de maneira muito mais complexa do que o que se costuma fazer. Com forte sotaque irlandês (literalmente, para os que escolherem assistir na dublagem em inglês), o longa relata processos de migração, crise econômica e dinâmicas de trabalho e de sujeição a autoridades nacionais, religiosas e econômicas. Por isso, por mais que a história busque e encontre alguns valores universais (no sentido de valores que são reapropriados em diferentes culturas de diferentes maneiras), ela está muito ancorada nas circunstâncias históricas e políticas daquele espaço.

É uma pena que não tive a oportunidade de reencontrar a potência e as sensações de arranjos imagéticos que são tão caros pras minhas memórias de cinema na devida sala escura e tela grande (vejo-me repetindo bastante esse lamento). Ao mesmo tempo, era sentado no chão da sala que, quando criança, eu me sentia abrigado pela magia do País das Maravilhas. Não tive dificuldade, assim, de me abrigar nesse novo universo da forma que pude. O belíssimo Wolfwalkers está disponível para streaming na plataforma Apple TV+.

Como uma observação final, gostaria de dizer que fui lembrado dessa sensação de ver os créditos de abertura de Alice… pela leitura do artigo-troca brilhante de Dieison Marconi e Fábio Ramalho, “Carta de uma criança queer para outra criança queer: percursos espectatoriais desviantes na infância”. Senti que esse texto me informou muito sobre essa estranha comoção que sinto pelas imagens bidimensionais da animação. Recomendo muito a leitura.

Comentários (2)

Mário Cláudio Simões | quinta-feira, 14 de Janeiro de 2021 - 17:09

Acho que o sotaque do inglês do filme é irlandês e não escocês...

Cesar Castanha | quinta-feira, 14 de Janeiro de 2021 - 19:03

Opa, foi um deslize mesmo. Agradeço a correção

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