"Inger, you must rot, because the times are rotten."
Sabe aquele filme que mexe com você de uma maneira inexplicável? Aquele em que você praticamente entra em transe e fica maravilhado; sem palavras? Poucos são os filmes que encantam desta forma, e por isso devemos aproveitar cada segundo quando temos a sorte de encontrá-lo.
O cinema já me proporcionou muitas experiências gratificantes e já me presenteou com todo o tipo de sensação, das mais agradáveis às desconfortáveis, mas raras foram as vezes em que eu acabei um filme me sentindo uma pessoa renovada, diferente daquela antes da sessão começar (se me perguntarem, lembro apenas de três filmes que se encaixam, merecidamente, na pequena definição). Mais raros ainda foram os momentos em que após a cena final eu poderia dizer que o cinema transcendeu a arte e alcançou um patamar inatingível, e eu me atrevo a dizer que este é O filme!
Ao término de A Palavra, dirigido magistralmente por Carl Th. Dreyer, a sétima arte presenciou o cinema em seu estado mais puro, honesto e transformador. Nas duas vezes em que tive o prazer de assistir essa obra-prima, fui levado a outra dimensão.
Acho importante pontuar que na minha perspectiva um filme que você ame e seja (um dos) seu(s) favorito(s) não necessariamente tenha(m) te tocado da forma que abordei na pergunta inicial. No meu caso, meu favorito é O Silêncio dos Inocentes, um filme que adoro, é claro, mas que me entretém muito mais do que me oferece sentimento. E sentimento é o que não falta em A Palavra.
Baseado na peça de mesmo nome escrita em 1925 por Kaj Munk, um pastor dinamarquês, o filme segue a história e relação conflituosa de fé da família Borgen. Morten é pai de três filhos e passa por um período em que sua fé está claramente abalada. Seu filho do meio, Johannes, acredita ser Jesus Cristo e é taxado de louco e coitado pela família, já Mikkel, o mais velho, não acredita em Deus e diz não ter fé nem na fé. Em meio a esse cenário ainda temos Anders, o caçula, que deseja se casar com a filha do alfaiate Peter Petersen, e Inger, esposa de Mikkel, que é uma senhora cristã de bom coração e que se dispõe a convencer seu sogro a aceitar o casamento de Anders e Anne (tanto Peter quando Morten são contra a união dos filhos por divergências religiosas).
Ao longo de toda a projeção do filme é preciso se entregar de corpo e alma à obra ou se corre o risco de perder aspectos fundamentais e reflexivos que são abordados. Em A Palavra somos testemunhas do poder que a fé exerce sobre nós, mas Dreyer nunca a deixa cair em um tom impositivo. Em um belo diálogo, vemos Inger, que está grávida pela terceira vez, prometer a Morten um neto menino caso ele aceite o casamento de Anders e Anne. Pode parecer bobo ou só uma conversa como qualquer outra, mas Inger fala com tanta propriedade, tanta sinceridade e tanta fé que não tem como você não crer em suas palavras. Inger ainda é dona da inesquecível e linda frase: "Eu acredito que muitos milagres acontecem em segredo" enquanto debate com seu sogro.
Outro momento interessante a ser destacado é quando Johannes comenta que as pessoas acreditam no Cristo morto, mas não nele: o Cristo vivo. É importante salientar que A Palavra precisa ser assistido com muita calma e paciência, visto que seu tom teatral e diálogos profundos podem afastar o espectador da obra. Como já dizia um comentário que li um tempo atrás: as pessoas levam 5 minutos para atravessar a sala e concluir uma frase - a título de curiosidade, o autor deste comentário odiou o filme. É inegável que o filme se move com muito cuidado (e lentidão), só que para mim isso só o tornou mais poético e contemplativo.
A câmera de Dreyer passeia lentamente pelos cômodos da casa e encontra com perfeição uma fotografia intimista e enquadramentos que poderiam ser emoldurados, mas que se distancia de nós nos olhares perdidos de Johannes e nos diálogos dos personagens, que muitas vezes parecem estar falando com as paredes.
O exercício de fé que Dreyer propõe está presente em todo o filme, mas cresce a partir do momento em que Inger adoece e Peter diz a Morten que, se for preciso, gostaria que Inger morresse para que Morten se convertesse à religião certa, o que obviamente causa uma ira e resulta em um ataque de fúria do patriarca Borgen.
Morten, assim como todos da família, tem muito carinho por Inger e não quer que a nora faleça. Conforme ela havia prometido, seu terceiro filho nasce menino, mas já vem ao mundo morto. Maren, filha mais velha de Inger, tem um diálogo sincero e denso com seu tio, perguntando se a mãe irá morrer logo e afirmando que deseja que isso aconteça, para que depois o tio a desperte, "assim como o rapaz da bíblia". Johaness responde que não seria possível, pois a família não deixaria que ele operasse o milagre, mas pergunta se é isso que a pequena Maren quer, que responde "sim" e ainda diz para o tio não ligar para os outros, afirmando também que ficaria muito feliz se a mãe ressuscitasse.
Quando o doutor que realiza o parto de Inger sai do quarto da mulher, ele diz que ficará tudo bem com ela e deixa a casa dos Borgen. Em seguida surge Johannes profetizando que Inger irá morrer, conforme já havia dito para sua sobrinha, e como de costume, seu pai não crê no que o filho diz, até Mikkel sair do quarto e contar que, de repente, Inger partiu ao dormir.
Após a morte de Inger, Johannes deixa um bilhete e some, fazendo com que toda a família o procure sem sucesso. Seu retorno ocorre durante o enterro da cunhada, quando ele volta a ser Johannes e não mais Jesus Cristo. Johannes diz que se as pessoas no enterro tivessem pedido a Deus para trazer Inger de volta à vida, ele traria. Seu pai e o reverendo local acham a fala de Johannes uma blasfêmia, mas Maren acredita em seu tio e sua fé faz com que Johannes converse com Deus pedindo para que Inger acorde. Em uma das cenas mais arrepiantes do cinema, Inger volta a respirar e move lentamente seus dedos enquanto ainda está deitada no caixão. Aos poucos ela se levanta, abraça e beija seu amado, que ao presenciar o maior milagre de sua vida, diz ter fé.
Se a família Borgen, os Petersen e o reverendo presenciam o milagre de Johannes, o espectador presencia e reverencia o que Dreyer criou em cena: o maior milagre da história do cinema. Dirigir uma ressurreição é difícil pois o diretor pode acabar caindo em áreas que não gostaria, como deixar a cena muito falsa e fora da realidade ou até mesmo tornar o momento espiritual em algo cômico por não saber como instruir os atores, mas para nossa sorte a mão e o olho técnico de Dreyer não exageram no ato final (ou exageraram ao ponto da perfeição?).
Tenha você fé ou não, A Palavra é um filme que irá limpar sua alma, renovar suas esperanças e te fará crer em milagres, nem que seja somente durante 125 minutos da sua vida.
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