Tentarei tecer um comentário sobre essa aberração. Difícil o fazer. Não nego as qualidades técnicas do filme, nem a capacidade interpretativa de seu elenco. Mas mais do que tudo o que se depreende de positivo, o que impera é o pensar de seu criador. Um ser moralmente execrável com sua mentalidade nazista. Então o que se segue é um desabafo de quem está quase a partir para aqueles que irão herdar esse mundo. Talvez venha a cometer algum excesso, mas esses serão infinitamente menores que o horror da proposta desse demoniozinho escandinavo.
Dogville é uma demonstração magistral de algumas das teses do nacional socialismo; a eugenia principalmente. Um filme que age de maneira a se vingar de todo aquele que um dia tentou ensinar que cada pessoa deve respeitar a alteridade, pregar a compaixão, a empatia e a compreensão. Tal proposta não poderia ser vendida ao público consumidor de filmes como “Matrix”, “O Quinto Elemento”, “Motoqueiro Fantasma”, “Independence Day” e outras ficções biônicas que transforma o cinema em simples dispositivo técnico, que deve ser eficaz ou não ser.
Dogville é a história de aniquilação de um indivíduo pelo grupo. O individuo tende a desaparecer diante do grupo, já que freqüentemente, ele se define como referência a um ou mais grupos. Confunde-se geralmente os interesses privados, o ego e todos os acessórios do ser com a liberdade do indivíduo – nesse caso a individualidade não foi exaltada, cultivada ou conservada como tal.
Para muitos, a liberdade de pensar, é o direito que eu reivindico para mim mesmo de não pagar os impostos (tese defendida de forma velada pelo Partido Republicano Estadunidense): Para que devo financiar escolas e hospitais, se o que desejo é simplesmente honrar minha esposa, fumar meus charutos, beber uns tragos de um bom uísque e trabalhar dois meses ao ano, ganhando mais que uma empregada doméstica ganharia no curso de uma vida inteira? Então para muitos isso seria o indivíduo: a recusa da presença dos outros, o vangloriar o próprio umbigo em detrimento de sua família, de sua família próxima em relação aos demais parentes, desses parentes em relação aos vizinhos e destes em relação aos estrangeiros.
Podemos também interpretar o filme como uma fábula sobre a integração: num grupo, numa comunidade ou em um país (a referência ao estranho que vem sacudir as normas já puídas pelo tempo, a estreiteza de idéias que se ligam a si próprias, venerando um passado que prende e não engrandece com vistas ao futuro). A correspondência com o país retratado não está ausente, os fluxos sucessivos de populações de imigrantes, sempre sendo obrigadas a fazer mais que os “outros”, de ser mais nacionalistas que os do local, mais patriotas que os militares, etc. Percebe-se uma alusão clara a segregação social.
O que perturba os habitantes de Dogville é o aspecto de ser Grace alguém incompreensível: sua liberdade, seu juízo forte, sua recusa de se entregar, de deixar que vejam suas emoções, de aceitar mesmo as pulsões egoístas que a poderiam dominar. É isso que explica a mudança de opinião dos locais em relação a ela a partir de um determinado momento. Ela não pode se integrar já que não pode se submeter, fundir-se com o cenário: ela permanece estrangeira, um status distinto dos outros. Ela está ao centro por chamar a atenção, por não ficar choramingando seus problemas existenciais, por não agir como os outros. Para eles ela provavelmente não é normal, deve esconder alguma coisa de muito podre.
Uma das lições que eu tiro do filme é que não se escapa de um destino só por que você o recusa, a não ser que você queira adentrar em um muito mais indesejável.
O final radical é infinitamente menos violento que todos os episódios e incidentes que buscavam a desconstrução de Grace, empresa desejada e organizada pela comunidade (pelo trabalho, pela supressão de seu salário, pelos insultos e violação). Os risos que ecoavam durante a projeção no cinema, em cada uma das seqüências eram insuportáveis. Esse riso complacente das pessoas que se julgam boas, mobilizadas para se colocarem a distância, venderem a dureza, a indelicadeza tão corrente e tão facilmente admitida, à indiferença dos outros e legitimar, finalmente a lei do mais forte por um recurso nauseabundo: “É assim mesmo, as pessoas são o que são”. A natureza humana repele, tanto do lado dos gângsteres como do lado dos habitantes do lugarejo, mesmo combate, trincheiras iguais: Cada um por si, nada de moral (legitimidade dos valores hipocritamente brandidos com os braços abertos, para mascarar o medo: a lei, a legalidade, o bem, a igualdade), nenhum senso de honra e de dignidade, nenhum romantismo. Legitimidade da matéria, o desejo de possuir, submeter, de coagir mais que de olhar como um ser limitado, uma ínfima parte de um todo onipotente que não dá nada e toma tudo, a sociedade, esta conjuração de imbecis (seriam os pais dos bastardos inglórios?). Somente se pode ser digno sozinho. A voz em off, o narrador torna esse filme socialmente e moralmente algo morto. Ou algo que jamais deveria ter sido produzido.
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