Triste, cínico, desiludido, brutal e assustador, Sniper Americano mostra como o ufanismo e o belicismo podem ser venenosos não só para o soldado, mas para as pessoas que o orbitam. Muitos acusaram esse filme de ser um retrato imperialista da guerra do Iraque - eu mesmo me peguei pensando assim na primeira vez que o vi. Mas sempre me via tentado a retornar a essa obra. Esta foi a quarta vez que assisti ao filme e ele só cresce e se projeta cada vez mais para o lado oposto dessa minha primeira interpretação. Seu verdadeiro caráter, na verdade, está nas entrelinhas (nas cenas menores e, principalmente, no design de som) e apresenta muitas similaridades com Robocop e Tropas Estelares, de Paul Verhoeven (Sniper Americano é igualmente subversivo, porém sem o tom sarcástico), e Rastros de Ódio, de John Ford - a trajetória trágica do protagonista é encenada de maneira muito similar à do personagem de John Wayne, inclusive a "porta se fechando" no final.
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A direção de Clint Eastwood é fantástica. E mesmo ele sendo assumidamente de direita, republicano e a favor das armas (ele jamais negou sua opinião - da qual discordo), o diretor nunca deixou de questionar radicalmente aquilo que acredita através de suas obras. As consequências da violência e a natureza sombria do ser humano estão tão latentes em Sniper Americano quanto em obras-primas como Os Imperdoáveis, O Estranho Sem Nome ou O Cavaleiro Solitário. Seu cinema enxerga o que há de mais ambíguo na alma humana e confronta ideais por demais encerrados em si, como a justificativa ou não da eutanásia em Menina de Ouro, a justiça com as próprias mãos em Sobre Meninos e Lobos, a redenção (e eventual diluição) através do amor em Um Mundo Perfeito, a religião, o patriotismo e a psicopatia introjetados no soldado de Sniper Americano, e seu eventual endeusamento (as homenagens no final são tão irônicas quanto depressivas). O destaque da obra de Eastwood - que é não só repetido, mas ampliado aqui - é o que o assemelha aos cineastas que comparei no parágrafo anterior. Clint Eastwood faz com que seus filmes assumam o ponto de vista de seu protagonista quase o tempo todo, e é essa visão subjetiva que guia o maior tempo de tela do filme. Um exemplo é Coração de Caçador, onde o cineasta/protagonista John Wilson está mais interessado em caçar elefantes do que em filmar, ou O Destemido Senhor da Guerra, em que um militar enxerga ameaças e possibilidades de problemas a cada canto que passa. A lista de exemplos se estenderia a toda sua filmografia, assim como o "quase o tempo todo" que mencionei acima: o cinema de Clint Eastwood pontualmente questiona também sua própria lógica ao problematizar o que se viu em cena - como por exemplo, em Sniper Americano, o fato de Chris Kyle ter visto um explosivo nas mãos de uma criança e a eventual dúvida de seus superiores a respeito do caso. Kyle - e consequentemente nós - afirma ter visto o explosivo, mas aos poucos essa certeza do que se enxerga no campo de batalha se dilui e entra em xeque, com apontamentos de uma gradual falta de responsabilidade nas manobras do protagonista e seus momentos de pausa onde demonstra uma indignação frente a uma reflexão seja de um colega, seja da esposa, a respeito do real motivo de estarem lutando nesse conflito. Aos poucos, essas dúvidas tomam conta do corpo e da mente de Chris Kyle, a ponto de, na sequência de ação final, uma nuvem de areia tomar totalmente o cenário e o campo de visão da câmera e embaralhar tudo o que cerca o personagem (inclusive sua visão da guerra - resultante de uma epifania de horror ao que testemunhou).
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Outro ponto muito interessante reside na existência (vamos problematizar? OU NÃO) de um antagonista que ninguém sabe quem é exatamente ou que tenha sido visto propriamente: o Sniper sírio/iraquiano denominado "Mustafa". As semelhanças entre Chris Kyle e esta figura enigmática são muitas. Ambos são exímios atiradores; ambos não questionam seus senhores - Kyle não questiona o fato de a "fonte do terrorismo" estar no Afeganistão e a guerra ser no Iraque, assim como o "Mustafa" não questiona a brutalidade de seu contratador (o açougueiro); ambos possuem mulher e filhos (e mesmo com pouco tempo de tela, percebemos o distanciamento do antagonista para com sua família, assim como Chris Kyle ao longo do filme); seu nome, "Mustafa", além de simbolizar o que os "vilões" enxergam nele, também reflete a visão que os soldados americanos têm de Chris Kyle: "o escolhido" ("a Lenda", como gostam de falar); ambos sentem prazer pela carnificina que promovem e não se dão conta na hora do que realmente está em jogo. Com o confronto final entre essas duas figuras tão semelhantes (que, de novo, remete a Rastros de Ódio e a relação de coexistência entre Ethan Edwads e o índio Scar), que é o real motivo de o protagonista desejar retornar ao campo de batalha constantemente, a sobrevivência vem não acompanhada de uma sensação de triunfo e heroísmo, mas de uma constatação aterradora - e que Chris Kyle sente de maneira acachapante: após derrotar seu nêmesis/reflexo/duplo, o protagonista percebe a situação em que colocou a si mesmo e seus companheiros de guerra e uma sensação de morte iminente lhe toma todo o corpo (sua alma já havia morrido com Mustafa) e ele liga para sua esposa para dizer que está pronto. Pronto para quê? Ele diz para voltar pra casa. Mas que casa? Ele se sentia muito mais a vontade na guerra. Ele volta pra casa mas seus pedaços decepados (seu rifle, seu capacete, etc) ficam pelo caminho em meio a um turbilhão de areia, vento e balas de metralhadoras voando para todos os lados.
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Da mesma forma que William Munny, Jimmy Markum e Frankie Dunn, o Chris Kyle do filme é louvado por algo que, de uma lenda que inicialmente passou a acreditar (estopim para o início de seus erros), se tornou algo indigesto. Ao final ele tenta a todo custo renegar essa alcunha de "Lenda" não por uma falsa humildade, mas por desprezo e lamento - num simbolismo brilhante de Eastwood ao colocá-lo ao lado de ex-soldados desmembrados que demonstram alegria por estarem vivos, mas cheios de complexos irreparáveis por estarem despedaçados física e mentalmente - uma das constatações mais tristes e terríveis do filme, e que Chris Kyle a princípio negava (como no diálogo com o terapeuta, em que falsamente tenta se convencer de seu dever "superior" apenas para mascarar sua tremenda angústia diante de tudo).
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Existem pequenos problemas técnicos que puxam a atenção para si, como no caso de efeitos digitais inseridos em tiros que atingem paredes (a fumacinha é bem falsa) e o - é claro - bebê-boneco que mais parece um brinquedo da Estrela, fruto de problemas de filmagens (eles usariam dois bebês reais, mas um ficou doente e o outro os pais simplesmente não levaram). Mas no geral, o filme é extremamente eficiente (a belíssima direção de fotografia, os figurinos, o design de produção), tudo muito bem trabalhado. Mas o destaque mesmo, volto a repetir, vai para o som: toda a gradual insanidade de Chris Kyle é pontuada por pequenos ruídos dissonantes e jamais há uma exaltação heróica do protagonista - como acontece em filmes mais maniqueísta como O Resgate do Soldado Ryan ou Falcão Negro Em Perigo. É primordial reafirmar que os momentos mais importantes do longa são suas cenas mais sutis, como no instante em que vemos Kyle levantando peso enquanto aguarda sua próxima missão, ou quando ele bate no caixão de um companheiro morto em combate para prender uma insígnia (o som de um disparo acompanha o seu socar), ou na cena da festa, quando ele observa um cachorro. Prestem atenção em como os efeitos sonoros são ampliados nesses momentos. E esses momentos estão em quase todo o filme. Além disso, constantemente ouvimos tiroteios que povoam os ouvidos mentais do protagonista quando, por exemplo, ele está assistindo a uma TV desligada (é possível imaginar perfeitamente o filme mental que lhe prende a atenção). E se até agora não falei da atuação de Bradley Cooper é justamente porque ele alcançou um nível tão extraordinário que me vejo levado a mencionar sempre o nome do personagem - e não há elogio maior a um ator do que referenciá-lo dessa maneira.
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Chris Kyle nasceu e cresceu com uma educação dura e míope da vida (seu autoritário e fervorosamente religioso pai é o símbolo perfeito da nação que o protagonista cegamente serviu). Jovem e inexperiente, ele foi levado para a Guerra e nunca retornou de lá. O que voltou foi só sua carcaça. Uma máquina de guerra assassina cujo gatilho não teve tempo de distinguir inocentes de inimigos (ambos pereceram), que por muito tempo teve uma visão xenofóbica e racista do que julgava ser o inimigo, mas que percebeu a insanidade que estava mergulhando. Uma carcaça a tentar recuperar algum amor pela vida e, quando conseguiu um fiapo deste, ela foi ironicamente ceifada da existência, morta por um ex-fuzileiro - um semelhante, alguém "dos seus", um não "selvagem", um não "inimigo". Aí estava seu verdadeiro inimigo: não o iraquiano, não o americano, nem o terrorismo, nem os EUA ou o Oriente Médio em si. Mas a Guerra. A Guerra em si. Uma deidade da destruição, como um deus da morte e do inferno que lhe veio cobrar a alma, um deus que lhe impediu de encontrar a paz na sua família. O ex-fuzileiro perturbado que matou Chris Kyle foi só a mão desse deus do horror. A Guerra. Só resta o lamento: não pelo "Capitão América" que tentaram criar a partir dele (imagem esta que foi criada só por quem não experienciou os horrores e a loucura da guerra), mas pelo monstro que se tornou, mesmo tendo um coração bom. Chris Kyle foi uma vítima da Guerra tanto quanto foram as vítimas de seu rifle.
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Um filme triste. Muito, muito triste.
Gosto demais desse filme. Algumas pessoas torcem o nariz para ele, afirmando que ele segue o viés conservador do velho Clint. Eu penso que a arte não deve ser vista sob um olhar ideológico. Texto muito bom!