Durante sua notável e flexível carreira o cineasta David O. Russell brigou publicamente com seu elenco, se tornou favorito em diversas premiações, nunca se contentou com um único gênero - indo de um drama sobre lutadores de boxe para uma comédia romântica – e rendeu vários prêmios para os atores e atrizes com quem trabalhou (principalmente aqueles de seus últimos dois longas), e não é à toa, já que todas as suas produções são, na verdade, uma prova da capacidade de seu elenco. Afinal quem não se lembra da excelente interpretação de Jason Schwartzman em Huckabees - A Vida É uma Comédia ou do surpreendente retorno a boa forma de Robert De Niro em Silver Linings Playbook? O fato é que mesmo tendo uma excelente história em mãos, David O. Russell sempre deu prioridade à seus atores e personagens, fazendo com que o roteiro trabalhasse em função deles. Isso até seu mais recente filme, intitulada de American Hustle, onde O. Russell parece que, finalmente, equilibra tudo: O elenco continua em ótima forma, mas o roteiro não fica pra trás e acaba surpreendendo em vários aspectos.
Tendo como base a verídica operação Abscam, Trapaça conta a história de Irving Rosenfeld que tira seu sustento de um esquema pensado especialmente para tirar dinheiro de pessoas preocupadas com sua situação financeira. Tudo fica melhor para o protagonista quando conhece a belíssima Sydney que se mostra a amante perfeita e a sócia ideal. Porém, o esquema é interrompido com a chegada do policial Richie DiMaso que logo depois de descobrir todo o método do casal, sugere uma solução para que para que os dois saíssem ilesos: DiMaso bola um plano para prender políticos corruptos onde o casal de trapaceiros é essencial. Até o fim da operação outras duas figuras importantes vão entrar no jogo: Carmine Polito, um simpático político, e Rosalyn, a histérica e imprevisível esposa de Irving.
Tendo em mãos boa parte dos atores com quem trabalhou anteriormente, David O. Russell parece saber o momento exato para fazer cada um deles brilhe em tela: Após surpreender em O Lado Bom da Vida, Bradley Cooper está ótimo novamente em um personagem que chega não chega a ter a bipolaridade de Pat, mas tem variações de humor que deixam sua interpretação ainda mais interessante. E enquanto Amy Adams vive uma femme fatale que parece ter saído de um clássico noir (e se saí muito bem no papel), Jeremy Renner parece ainda estar se acostumando com o diretor. E como de costume, Jennifer Lawrence impressiona em uma interpretação que mesmo soando exagerada em alguns pontos, é precisa e direta, transformando uma simples coadjuvante em uma das personagens mais cativantes do filme (é ótimo ver como a atriz nunca entrega a real capacidade de Rosalyn, que ora parece inocente e manipulável; ora parece ser a pessoa mais inteligente entre tantos trapaceiros natos apenas prejudicada por seu lado delicado lado emocional). Mas é realmente Christian Bale quem cria o personagem mais complexo de American Hustle: Forte e frágil ao mesmo tempo, Irving Rosenfeld é uma figura que soa segura uma grande parte do tempo, mas que prova que essa segurança é falsa ao ser manipulado por uma pessoa que considera intelectualmente inferior e que tem o ego prejudicado pelo corte de cabelo cuidadosamente calculado para parecer sólido. E por mais estranho que possa parecer, até mesmo o penteado do protagonista é importante para salientar sua relação com Carmine (que ao contrário dele, tem um cabelo realmente consistente), o que fortalece a forte dinâmica entre os dois.
Escrito pelo próprio David O. Russell, ao lado de Eric Singer, o roteiro é inteligente o suficiente para construir a trama de forma segura, fazendo com que o filme nunca perca seu fôlego, prendendo o espectador através das inúmeras reviravoltas ou soltando diálogos rápidos e espertos que nunca deixam o elenco sem ter o que falar. Trapaça ainda consegue tempo para desenvolver a ideia de que todas as pessoas (ao menos aquelas que protagonizam a história) precisam, em algum ponto da vida, trapacear e enganar para sobreviver, e é interessante como O. Russell faz isso de maneira sutil, optando por soltar pequenos detalhes da vida de cada personagem para confirmar a ideia. E como na maioria dos filmes do cineasta, Trapaça ainda conta com uma trilha sonora sensacional que somada à incrível direção de arte, envolvem o espectador completamente não apenas na época em que a trama se passa, mas também na atmosfera da narrativa.
E se como não fosse suficiente Trapaça equilibrar as qualidades da filmografia de O. Russell, o filme também soa como um verdadeiro estudo de gênero ao combinar o estilo leve e suave de O Lado Bom da Vida com a conotação séria e dramática de O Vencedor (e chega a ser divertido ver a reação de pessoas que ainda não viram ao filme ao se depararem com uma indicação de Melhor Comédia ou Musical no Globo de Ouro). O maior exemplo dessa mudança constante de tom, se dá no momento em que o personagem vivido por Cooper agride outra pessoa com um telefone, cena que teoricamente soaria brutal, mas que se torna incrivelmente cômica apenas pela forma que foi editada. Assim, ao conseguir ser inteligente e divertido ao mesmo tempo, Trapaça é o tipo de filme para se assistir mais de uma vez, afinal é praticamente impossível aproveitar tudo que o longa tem para oferecer em suas curtas duas horas.
Dessa vez, David O. Russell mereceu o sucesso recebido.
OBS: O texto foi originalmente escrito em dezembro de 2013, portanto depois de conferir o restante dos filmes indicados ao Oscar me vejo na obrigação de dizer que mesmo sendo muito eficiente, American Hustle perde para vários filmes dentro da premiação e suas dez indicações, concorrendo com 12 Anos de Escravidão, Ela e Gravidade, são inexplicáveis.
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