The End of Evangelion já evidencia em seu título a completa dependência que possui em relação ao seu material original. É uma obra complementar, e pior, feita “por encomenda” como resposta ao seu público em polvorosa e indignada com uma obra que achavam que era sua, mas, de repente, tomou um rumo que não fazia parte delas. Pois é, ser dependente nunca foi parâmetro para tamanha particularidade.
Falar de Evangelion já é um reflexo da potência de seu significado cultural, visto o rebuliço causado pela Netflix ao expor no catálogo um anime de quase 25 anos atrás. Fala-se muito de Evangelion hoje assim como se falava em 1995. Há sempre algo de novo para se interpretar ou jamais assimilamos o que alguém quer nos falar, a não ser que convenha? Falo de “alguém” porque acompanhar a série Neon Genesis Evangelion e, na sequência, testemunhar “mais um final” pelo filme é um processo de compreensão do que é autoria direta (representada no criador Hideaki Anno) e indireta (o alguém simbólico que é o público). Ambos nos falaram inúmeras coisas. Poucas parecem ter sido de fato assimiladas.
Assisti a série e o filme para depois descobrir a caótica produção, os remakes incessantes e o real propósito de The End of Evangelion, um mero final alternativo para acalentar os fãs. Mas estamos falando de Evangelion e nunca que o objetivo seria acalentar. Se tem algo que essa saga não traz é conforto. E só comprovo isso agora no momento em que escrevo essa análise, perdido em como direcionar tantos focos que podemos suscitar. Eis aqui o drama do autor, o drama de transmitir uma mensagem. Acho que começo a compreender Hideaki Anno.
Saber dos bastidores, ameaças de morte dos fãs e de como foram as reações aos diversos finais ajuda na roupagem do impacto de Evangelion. Mas não me soa tão necessário porque está tudo lá. Na arte. Na forma de expressão. A série joga com expectativa a todo instante. É um anime de gênero, com robôs gigantes, violência gráfica e traços cheios de sexualidade. Prato cheio para atrair seu público alvo, com o intuito de revelar, pouco a pouco, que o cerne da trama não está no futuro apocalíptico, na religião ou no corporativismo desenfreado. Está no público alvo. Público que se vê representado em seus personagens e almeja seus desejos em outros personagens, mas não soube lidar bem quando a ideia era revelar quem realmente são esses personagens. De mais um anime escapista, Evangelion se converte em sessão de terapia alucinógena, crítica e autocrítica da alienação cultural da qual faz parte, falando diretamente com a comunidade nipônica, porém com alcance universal.
O protagonista irrita a todos porque ele faz exatamente o que a maioria de nós faria: teria medo diante da grandiosidade de um propósito. O grande pavor de transpor a barreira da insegurança social e saber onde termina o indivíduo e começa a sociedade, fruto do indivíduo. É compreender que nossos delírios fantasiosos se expressam através da cultura e cada vez mais se apropriam do nosso cotidiano, corrompendo o ser. É abusando da insinuação sexual fetichista, da objetificação do outro (principalmente da outra) e do descarrego inconsequente pela agressão que se perde a interação humana e caminha-se para a barbárie. O pensamento do homem é limitado e selvagem a esse ponto. E é nisso que a série trilha cuidadosamente os caminhos de seus personagens para enriquecê-los, torná-los conquistadores e, quando menos esperamos, fomos fisgados pela própria hipocrisia e não há mais como fugir da desconstrução e ruína da carne.
Dane-se a ação, dane-se o espetáculo do desejo. O confronto com a realidade se dá no subjetivo, onde podemos ser tão únicos como apenas mais um em meio a bilhões. Tudo junto no mesmo balaio. O espetáculo aqui é no impressionante casamento entre subtexto e estética, ambos se desfazendo conjuntamente até que só sobram frases feitas, perguntas banais e rascunhos de arte. A metalinguagem é arte sobre arte. Espectador sobre autor. Reação sobre ação. E para mim, esse é o grande espetáculo.
Tudo isso é uma inflexão sobre a série, não do filme, essa coisa dependente. The End of Evangelion, um novo final desnecessário, encontrou em sua irrelevância a sua força motora. E assim, se fez único. Como toda mente jovem e poluída pelo meio, o filme olhou para si e seu passado, se afundou em seus erros e hipocrisias, fez o que os outros esperavam dele ao invés de pensar no que queria. Desqualificou seus acertos do passado. Mas antes que fosse tarde, se reduziu a uma vingança suja. Num ato de rebeldia, se mutilou, se masturbou, espalhou excrementos de pensamento. E fez tudo isso olhando nos olhos do público. Vigiando seu público, coletando seus dados para cobrar a dívida. O criador não olha mais para a criatura com carinho, agora parte inerente de um mundo corrompido.
A arte provoca porque tem esperança. A arte muda porque acredita que a sociedade muda. A arte também se ilude. Perdendo a esperança no seu objeto de estudo, reconverteu-o para suas origens: um objeto agressivo, covarde, machista, sexista, pedófilo, perdido, nojento.
The End of Evangelion. Um espetáculo desprezível.
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