Crimes e Pecados parte de uma premissa interessantíssima. De um lado vemos Judah (interpretado por Martin Landau) sendo chantageado por sua amante que ameaça contar para a esposa o caso que os dois vêm mantendo a cerca de dois anos. Do outro lado, o personagem de Woody Allen – Cliff – é convencido pela esposa a dirigir um documentário sobre o irmão dela, Lester, um famoso produtor de televisão pelo qual Cliff nutre grande desgosto.
Judah é um oftalmologista muito conceituado – na primeira seqüência do filme podemos notar o respeito que todos têm por ele ao ganhar um prêmio por suas atividades em sua área médica – e possui uma família “estável”, como bem diz em determinado momento do filme. A sua traição que pode estar prestes a ser revelada, fatalmente, resultaria no desequilíbrio de sua vida pessoal e profissional – Judah realizou algumas transações não muito éticas com os fundos de seu hospital. [mais um detalhe para mostrar que ninguém é perfeito, que todos estão passíveis de errar] Esta revelação é algo que Judah precisa evitar de qualquer maneira. Landau encarna o personagem de maneira exemplar; a insegurança que transpassa à tela através de sua atuação demonstra perfeitamente a complexidade do momento que vive. Allen – como diretor – parte então de um ponto extremamente sólido para as decisões futuras que seu personagem irá tomar.
A amante de Judah, Dolores, é outro personagem que deve ser estudado à parte. Dolores é um reflexo da histeria e nervosismo. Esses aspectos de sua personalidade colocam ainda mais pressão em Judah e, claro, aumentam a tensão de quem assiste ao filme; a sua decisão de relevar para a esposa de Judah sobre o caso deles parece cada vez mais iminente. Judah sabe disso e uma decisão deve ser tomada. Durante uma consulta que realiza com Ben (irmão de Lester), expõe ao padre a situação pela qual está passando. Ben diz que, possivelmente, a única maneira de resolver esse dilema seria contar tudo à esposa de Judah e esperar que ela o perdoasse; lhe diz também que a vida deles não seria mais a mesma se isto fosse feito, mas dessa maneira poderiam recomeçar e acabar tendo, até mesmo, uma vida melhor.
Allen sabe que o seu campo de trabalho abre a possibilidade para diversas discussões; neste diálogo entre Judah e Ben podemos notar o ideal que Allen tem de que pequenas decisões tomadas na vida podem alterar totalmente seu destino – é totalmente compreensível a magnitude emocional da situação pela qual Judah está passando: além de perder o “grande amor” de sua vida, toda a carreira que construiu será devastada. E Judah não se preocupa só consigo, mas também com os reflexos que os olhares de reprovação da sociedade terão em sua família – mais uma crítica de Allen à sociedade, onde todos são vítimas do julgamento dos que vivem à sua volta.
A decisão de contar tudo à esposa, dessa maneira, é rechaçada por Judah. Mas o que fazer então? É para responder a esta pergunta que Judah chama seu irmão, um sujeito bastante misterioso. A sugestão não poderia ser outra: livrar-se de Dolores. Allen então deixa de lado um pouco o drama e a comédia, para aplicar em seu filme o suspense. E a cena em que Dolores é assassinada é não menos que genial – Allen, ao meu ver, só fez outro trabalho a altura desta cena em Match Point. Problema resolvido então, certo? Aos olhos do irmão de Judah o problema acabou, mas o oftalmologista não pensa da mesma maneira. E aí começa seu dilema moral que remete à sua formação religiosa: como pode ter assassinado uma pessoa e sair impune?
Cliff, por outro lado, enfrenta um dilema moral bastante diferente do de Judah. Para conseguir dinheiro e financiar o pequeno projeto que está fazendo, se submete a dirigir um documentário sobre Lester, irmão de sua noiva. Lester é o típico produtor de televisão: arrogante e que só produz porcarias. A evidente crítica de Allen, dos que não tem oportunidade frente ao mercado que consome porcarias Hollywoodianas todo ano, parece mais atual do que nunca, assim como a dificuldade de autores fazerem filmes mais pessoais. Mesmo sentindo-se humilhado, não resta a Cliff outra opção; é sendo vítima do sistema que, talvez, poderá realizar o sonho de teu seus próprios trabalhos divulgados para “um grande público”. Nesse meio tempo, Cliff conhece Halley, uma das produtoras do documentário sobre Lester e começa a nutrir por ela uma paixão. Existe aqui outra bela sacada de Allen: seu personagem sente-se tão deslocado e sozinho no mundo que a sua sobrinha, com a qual vai regularmente ao cinema – em certo momento Allen diz que só ir ao cinema não a daria a educação que prometeu ao seu pai, morto. Outra crítica? – torna-se a confidente dos sentimentos que Cliff tem por Halley e ainda dos problemas que está enfrentando em seu casamento. É uma ideia que não chega a ser plenamente desenvolvida, mas da maneira que foi feita torna-se um belo aditivo para melhor entendermos a mente de Cliff.
A atração de Cliff por Halley vem justamente desse distanciamento dele para com o mundo. Cliff encontra em Halley alguém que gosta das mesmas coisas que ele e, ela ainda se interessa em produzir seu documentário sobre Louis Levi – um filósofo de quem o filme aproveita alguns ensinamentos sobre amor e vida para passagens belíssimas. Halley, entretanto, acabou de sair de um relacionamento e, frustrada, não tem certeza sobre as decisões que eventualmente terá de tomar – como pode se ver o filme de Allen discute os relacionamentos em diversas camadas; tenho de admitir que Allen nunca me chamou a atenção, apesar de respeitar seu trabalho, mas aqui ele simplesmente calou minha boca. Com a aproximação dos dois surge ainda a ótima oportunidade de analisar o desprezo de Cliff por Lester. Seria este desprezo oriundo da inveja que Cliff tem por Lester? Não é algo que fica claro ao longo do filme e nem deveria, pois são sentimentos obscuros que uma pessoa pode ter mesmo que involuntariamente; mais um ponto positivo para a obra: as ideais dos personagens estão tão bem inseridas em seus pensamentos que eles parecem não se dar conta da dimensão de algumas de suas ações.
A moralidade é o cerne principal de ambas as tramas, ainda que em níveis diferentes – mas é um filme de camadas, logo, isto é bastante natural – e, ao final, quando as tramas vierem a se cruzar por total, todas as discussões serão trazidas à tona em apenas uma vez. Afinal, o que seria esta moralidade que todos pregam? O roteiro de Allen – que dúvida da existência de um Deus a todo o momento - sabe usar esta discussão para criar momentos memoráveis. O maior deles, talvez, seja o retorno de Judah a um jantar passado onde temas religiosos e políticos estão sendo discutidos. May – tia de Judah – questiona a existência de Deus, afinal, os nazistas pagaram por todo o mal que fizeram? E se não existe um Deus, também é questionável o conceito de moralidade, afinal não é uma lei superior que rege o universo e sim a capacidade de cada pessoa de fazer um autorreflexão definir o que acha correto ou não. E May ainda lembra que ao longo da história são os vencedores que são lembrados e seguidos de exemplo. Já imaginou se os nazistas dominassem o mundo? Quem julgaria errados seus conceitos e atitudes? Olhando por este lado, o filme de Allen é bastante assustador, mas de uma maneira realista. Na cabeceira da mesa Sol, o patriarca da família – e extremamente religioso – questiona os pensamentos “soviéticos” de May – em outra clara crítica a eterna Guerra Fria, onde ninguém sabia de verdade pelo que estavam lutando a não ser a constante busca pelo aumento de poder. Sol – e alguns de seus amigos – acreditam veemente na presença de uma força que possui a regência do universo e assim define não só a moralidade, mas todos os conhecimentos da humanidade; Sol afirma que prefere ficar iludido a presença de um Deus mesmo que ele não exista, pois dessa maneira pelo menos seria mais feliz do que os céticos. E parece ser o caminho mais fácil para grande parte da população: se apegar ao desconhecimento como fuga à dura realidade que os cerca. [esta cena do jantar remete diretamente ao cinema de Bergman, e não é surpresa, já que os temas tratados por ele e Allen são muito semelhantes]
Tendo todos estes pensamentos sido colocados na mente do espectador – e que quantidade de assuntos: vida, existência, moralidade, culpa, inveja, traição, adultério, relacionamentos, perversões sexuais, entre outros – o filme recorre ao brilhante ato final. Além de fazer uma “revisão” dos vários temas já citados, ainda discute-os através de seus protagonistas. Judah parece ter superado os seus questionamentos de culpa e é novamente um “homem livre”; ao contar para Cliff sobre uma “ideia que teve para um filme”, Cliff lhe diz que homem com tamanha culpa jamais conseguiria voltar a levar uma vida normal. Judah responde que aquilo ali é a vida real e, diferentemente, dos filmes de Hollywood não há espaço para redenção.
É através da capacidade de superação do ser humano frente àquilo que lhe é imposto e a característica de encontrar beleza nas pequenas coisas, que Allen, propõe que aprendamos com nossos erros e, já que não existe ninguém para nos reger, que tomemos consciência dos nossos atos e do mundo à nossa volta, tornando-o um lugar melhor. Sim, a vida é dura e os questionamentos feitos ao longo do filme continuarão a existir, mas com a busca de sabedoria muito do que foi discutido pode tomar nova forma. Os ensinamentos de Levy antes de adentrar os créditos são umas das coisas mais belas que o cinema já proporcionou; e o filme de Allen uma obra de extremo respeito.
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