Uma mulher duma beleza incrível e quase plástica, mais uma peça de porcelana do que uma pessoa, deitada num sofá com um background em cores vibrantes e tão belas quanto a mulher, enquanto sangue num vermelho que atinge um tom magnífico sai de seu pescoço e escorre pelo corpo. Isso tudo registrado pela lente de um jovem fotógrafo, enquanto a câmera (a do filme, não a do jovem fotógrafo) dá suaves travellings pelo maravilhoso ambiente.
Esta primeira cena, linda, violenta (não apenas a violência como ato, a violência na própria composição, as cores gritantes dos planos são violentas por si mesmo) e plástica abre a poesia imagética do Refn. Se já havia algum tempo em que ele trazia essa proposta do surrealismo para narrar ou disserta sobre algo, é inegável que ele chegou ao seu máximo (até agora) dentro deste ideal e cinema.
Estética é conteúdo, e conteúdo é estética. Não são dissociáveis, mas podem ser sobrepostos, o conteúdo (discurso) pode ser curvado a estética, a estética (esta, aqui, uma inteligível beleza) pode ser curvada ao conteúdo. E é isto que Refn traz; seja da beleza visual e sonora que ele, junto com a equipe, proporcionam, colocando o filme em algo onírico e único (todos os frames são um pedaço de sonho, mesmo aqueles que trazem as imagens mais horrendas), ou na narrativa, que trata de um ideal e beleza desumanizante, que extrai do corpo todo o seu conteúdo e deixa a ele a mais pura e simples estética (que, mesmo sendo apenas e puramente estética, muito diz); “Sem a minha beleza, eu não seria nada”.
É apenas estética? Sim. Essa estética tem muito “conteúdo”? Também. Há uma quantidade quase interminável de camadas, de possíveis interpretações, de textos e subtextos, simbologias; uma trama coerente de discursos numa aparente trama narrativa incoerente. A curva das personagens e da narrativa existem aos seus trancos; ainda que nunca fiquem entediantes (é um filme denso e tenso, do primeiro ao último frame), se ater a elas é sub-aproveitar a obra. Muito além do clima de pesadelo (é um sonho lindo e horrível), daquela sensação, desde a cena da bela jovem num sofá sendo fotografada, de que tudo irá se tornar um verdadeiro inferno, o filme diz através de suas imagens, e diz que ele não precisa mais do que suas imagens.
Refn, em sua loucura imagética e desapego ao roteiro, conseguiu atingir o que queria (e fico feliz caso este ainda não seja o seu alvo e ele entregar um filme melhor ainda), a imagem narrando por si só algo que não cabe num texto, uma imagem violenta, gritante, agoniante e magnífica. A imagem (em “imagem” cabe o som também) aqui é metalinguística, ao mesmo tempo que fala da humanidade de uma personagem, a imagem é ela, é o próprio conteúdo, do mesmo jeito que a imagem de sua protagonista é o seu próprio conteúdo. Ele conseguiu fazer o que deve ser, até agora, o seu melhor filme.
A síntese de nossas discussões em nosso dois comentários me deram uma alegria e perspectiva para esse filme que é difícil encontrar em obras que assisti recentemente. Belo texto, Wiki.
bom texto wiki, só não é melhor que o da cinderela baiana