Em dada sequência de Terra em Transe, a montagem concatena o plano geral com uma multidão de cidadãos (imagem símbolo do povo) e o contra-plongée do candidato Vieira (José Lewgoy) olhando solitário para a comitiva. A desproporção monumental entre a massa popular e a autoridade política salta aos olhos: o candidato é uno e está a beira do precipício do palanque, mas ainda possui poder sobre aquela multidão. O que fundamenta essa hierarquia tão disparatada? Como, momentos depois, Vieira consegue reprimir outra multidão de camponeses com uma mera fileira de soldados? Isso nos remete à inquietação de Darcy Ribeiro: o abismo profundo entre as classes dirigentes e as oprimidas e a sujeição das últimas, a grande massa de trabalhadores, aos desmandos das primeiras, a minoria no país.
Antes de buscar alguma resposta, observemos a cena antológica do protagonista agonizando nas dunas. A quase simbiose entre o branco da areia e a luz estourada do céu transformam o quadro numa tábula rasa, propícia à projeção do poema de Mário Faustino. A cena talvez sintetize toda a proposta do filme: Terra em Transe é uma página em branco na qual Rocha fará o esboço sobre o momento político de seu tempo (ou será apenas de seu tempo?). Mas se tratando de cinema, não estamos falando de palavras, mas de imagens e encenação, e Rocha, como bom cineasta, escreverá seu poema lançando mão de um arsenal imagético e alegórico extremamente rico. Terra em Transe atesta constantemente o seu propósito de encenação. Nos enquadramentos amplos em que se evidencia a relação entre ator/personagem e palco/cenário, nos cortes bruscos da montagem e na não linearidade da narrativa, nos movimentos quase intrusivos da câmera, na luz estourada de certas passagens e no grau elevado de caricatura de grande parte das caracterizações. A encenação aliás é de grande qualidade. Os atores/personagens/alegorias são como centros de gravidade dos quais a câmera inevitavelmente se aproxima e são poucos os filmes brasileiros que conseguem reunir na mesma fita nomes do naipe de Paulo Gracindo, Jardel Filho, Glauce Rocha e Paulo Autran (este último o dono da cena). A força desses símbolos termina por "rasgar" o papel/filme nos primeiros planos em que os atores comunicam-se com os espectadores, extravasando o espaço diegético.
Mas Terra em Transe não é só um desfile de alegorias, mas uma guerra entre elas, vide as disputas simbólicas entre diferentes figuras de poder (incluindo o poeta protagonista), que ecoam até no contraste entre as cenografias - o palácio monumental de Diaz, oposto à mansão colonial de Vieira. O momento mais dramático, e igualmente antológico, é aquele onde o povo também procura o seu lugar na contenda por uma personagem-símbolo: o sindicalista Jerônimo, logo silenciado pelo intelectual de esquerda (uma das francas autocríticas de Rocha à elite cultural de seu tempo). A palavra é logo tomada pelo camponês de Flávio Migliaccio, mas este é imediatamente taxado de subversivo e convertido na imagem mais conveniente à autoridade política e eclesiástica: a do mártir imolado. Mesmo constituindo a massa do plano geral, o povo não tem direito à porta-voz simbólica ou ao momento do discurso: o palco fílmico já foi tomado por outros agentes que se encarregarão de falar pelo seu destino (embora curiosamente o responsável pela gravação desses discursos seja sempre um homem negro com microfone). Nessa guerra de imagens, sobressai-se outro contraste na sequência final: a oposição entre o caloroso líder populista, cercado pelo povo, e o líder reacionário, solitário e exuberante em paisagem monumental. Não há dúvidas quanto ao resultado: o último é quem triunfará.
A guerra de imagens é a resposta de Glauber à inquietação do começo. Se as classes dirigentes continuam no poder mesmo constituindo minoria é porque elas dominam uma autoridade simbólica e uma retórica de imagem, mesmo de encenação. Voltemos ao contraste entre Vieira e Diaz. Embora o último não disfarce o seu cinismo e desprezo pelo povo, ele é circundado por diversas imagens de poder: o crucifixo segurado ao peito, a bandeira negra, o palácio de tom aristocrático, os bustos e estátuas gregas, a coroa e o manto imperiais com que sobe ao poder, o ritual simbólico em que toma o cálice sagrado ao lado do colonizador português, do jesuíta e do índio (figuras-chave e legitimadoras da história oficial da nação). A própria performance vigorosa de Paulo Autran e a monumentalidade de cenas como a do político esbravejando do alto das montanhas compactuam para uma retórica imagética de grande força - e a isso podemos acrescentar a figura do empresário comunicador de Paulo Gracindo, o principal transgressor da quarta parede. Ora, o abismo entre as classes não é legitimado por uma produção simbólica? Por imagens de poder e retóricas de encenação que naturalizam o domínio de uma minoria, o triunfo do homem mais medíocre e descaradamente reacionário? De que modo explicar as relações de poder no Brasil sem considerar a fundamentação dessa autoridade pela imagem?
Mas a resposta de Terra em Transe ainda é a resistência. A cena final é também ela uma síntese da obra: na tábula rasa das dunas, o poeta escreve seu manifesto com a arma da guerrilha, e jamais cai. Jamais cai. E não seria o cinema de Glauber um poema de rajadas, um desejo inquietante de alvejar seu espectador, quando tudo já feito não parece ter mais eficácia? Outra cena é bastante simbólica nesse sentido. No comício popular de Vieira, a câmera se demora na apresentação de um grupo de samba, por mais de uma cena, e os passistas e dançarinas chegam a obstruir as personagens do filme, dispostas que estão no primeiro plano do quadro. Esse é talvez o único momento em que a imagética popular se sobressai às figuras alegóricas da narrativa: a câmera é brevemente assaltada pelos dançarinos e demais figurantes que não hesitam em olhar para a lente. Mesmo que por alguns segundos, os coadjuvantes subvertem a hierarquia do povo filmado e o homem burguês com a câmera, ao ponto de entusiasmar uma das próprias personagens/atores do filme. Os passistas, como o poeta da guerrilha, também incorporam a resistência, ocupando o espaço que não é seu, apropriando-se da media para imprimir sua imagem.
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