A Frente Fria que a Chuva Trás nos apresenta tudo que há mais bonito e melancólico no Rio de Janeiro. Na cena inicial, a bela carioca chega em seu conversível importado no Vidigal, favela onde é possível gozar de uma das mais belas vistas da cidade. Para a socialite, não bastava tomar sol em frente a praia do seu bairro nobre: era preciso experimentar o desconhecido.
Algo inerente a todos as juventudes, não importa a geração, é o desejo de experimentar. Ostentar experiências, sentir-se incluído e obter prazer não importa como. Sob estes precedentes, um grupo de jovens aluga uma laje no Vidigal para dar uma festa e experimentar o que é estar numa comunidade, mas claro, sem abrir mão dos luxos da high society: a bebida importada, a balinha, o MD, a maconha e a cocaína.
Os protagonistas, dois renomados atores globais (Johnny Massade e Chay Suede), são clássicos estereótipos. Homens héteros, brancos, machistas, arrogantes e de classe alta. Ambos convidaram suas amigas socialites, as quais são o tempo todo hiperssexualidas e parecem obter prazer nisso.
“Me vê uma balinha”
“Só por um boquete”
“Tá, vamô ali”.
O grupo de meninas lembra muito as ninfetas da Disney em Spring Breakers e as socialites cleptomaníacas de Bling Ring, dois outros filmes que exploram o niilismo juvenil. As meninas sentem prazer no perigo, usam seus corpos para conseguir drogas, bebidas, status e sexo, além de alienarem-se perante a sua condição de fúteis e reprodutoras do machismo.
“Eu era muito fútil, sabe? Era mesmo”, diz uma personagem enquanto puxa um beck de maconha, “era muito desrespeitada no bar onde eu trabalhava. Mas aí resolvi sair de lá e abrir meu brechó. Virei uma mulher livre, independente”.
Uma terceira pessoa habita a área VIP do niilismo. Amsterdã é o nome da protagonista, Bruna Linzmeyer completade tomada, entregando uma performance ao mesmo tempo singela e degradante.
Em sua cena de apresentação, Amsterdã explica ao segurança contratado pelos rapazes (Mario Bortolotto, autor da peça que inspirou o filme) o motivo pelo qual ela está ali. Deita-se no chão sujo do banheiro debaixo da privada e alega que não gosta de nenhum deles, apenas vai às suas festas pra conseguir droga, afinal, rico gosta de gastar em droga cara. Diz ainda como adquiriu a heroína com a qual havia acabado de se picar: um boquete.
“É por isso que tô borrada. Fiquei 20 minutos chupando o cara e ele não gozava”.
Uma anti heroína que se prostitui pelo vício, com sua expressão marcante e texto ácido, tomada por ódio, rancor e frustração.
Além do segurança, dois personagens secundários mas não menos importantes compõem o pequeno grupo social do longa, grupo este que representa uma enorme parcela da sociedade. O dono da laje, “visionário” empreendedor Gru (Flavio Bauraqui) vive a eterna contradição se odeia ou não os playboys que o sustentam. Gru ainda faz o papel de aviãozinho, afinal, playboy que é playboy não vai na boca.
“Vai lá, Gru, trás pra mim”.
Gru recebe uma nota de 100 euros.
“Só aceito em dólar, mas vou quebrar um galho pra tu”.
Além do dono da laje, um ex-morador da comunidade e atual cantor sertanejo faz parte da festa. Ele vêm descolado, à moda sertanejo universitário e pede às suas fãs que busquem um copo de whisky importado pra ele. Uma das várias fãs inclusive raspa a virilha em sua homenagem, fazendo jus ao refrão de sucesso do artista, o qual fala sobre uma tal mulher “raspadinha”.
O filme tem outros três aspectos dignos de mérito: trilha sonora, fotografia e interpretações. A sequência inicial é embalada por um remix do hit “Summer” de Calvin Harris com o nostálgico “Sou Foda”, dos Avassaladores.
O funkeiro MC Livinho, conhecido pelas músicas extremamente explícitas e eróticas é prestigiado com “Bela Rosa”. A trilha também conta com a figurinha carimbada em festas, “Vamos Beber”, do MC Sapão. Além do óbvio privilégio que é fotografar um filme no alto do Vidigal, uma estranha ponte conecta a obra a Terrence Malick, em função de suas cenas com aspecto onírico e por vezes fabulesco, usando uma lente super desfocada. Em último lugar, as interpretações são quase cômicas, mas sarcásticamente reais. Por ser adaptado de uma peça teatral, alguns dos diálogos são monólogos carregadíssimos, com um subtexto extremamente irônico e um claro sarcasmo por parte dos autores. Os atores entraram na onda e deram seu máximo em cena, fazendo dramalhões quando necessário e jamais medindo palavras, algo que seria impossível num filme cuja explicitude no diálogo chega a ser agressiva.
Perto do fim, o monólogo arrasador e existencialista de Amsterdã em meio à festa. Um desabafo, um grito por atenção. A menina aponta o dedo pra todos e pra si mesma, numa desesperada tentativa de obter sentido naquilo tudo. Naquele eventos, naquelas pessoas, em si mesma e no estilo de vida de toda uma geração e de toda uma cidade.
A Frente Fria que a Chuva Trás é um retrato cru de quem melhor sabe lidar com o escatológico do ser humano. Neville D’Almeida, transgressor do cinema marginal brasileiro, volta com tudo após 18 anos e entrega uma obra que incomoda. Dividi minha atenção entre os boquetes nas mamadeiras de whisky e os senhores que saiam da sessão. Talvez ocupados, entediados ou simplesmente enojados. A high society carioca é fascinante, bela e melancólia. Em meio a paisagem sempre haverá o morro.
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