"- Nenhum homem jamais me deu nada de bom.
- Nós não precisamos de homens, mamãe. Fazemos isso por nós mesmas. Você e eu.
- Uma mulher decente não precisa de homem nenhum."
Marnie: Confissões de Uma Ladra (Marnie, 1964) talvez seja o filme mais pessoal de Alfred Hitchcock. Baseado no romance de Winston Graham, a obra é, em essência, um estudo de personagem, no caso Marnie, uma jovem aparentemente comum, mas que tenta compensar sua frigidez sexual com sua compulsiva cleptomania, e a origem de sua patologia tem raízes em um passado trágico do qual sua memória a privou (pelo menos conscientemente).
O interesse de Hitchcock pela obra, como o mesmo confessou, estava na parte do estupro, em que Marnie (Tippi Hedren) acuada por Rutland (Sean Connery), acaba sucumbindo a suas investidas sexuais, num cruzeiro de lua-de-mel forçado. Mas o conteúdo da obra vai muito além, tratando de temas polêmicos para a época, como pedofilia, infanticídio e cleptomania, tudo tratado com a sofisticação e o apuro técnico típicos do cineasta. Evan Hunter seria o roteirista do filme, mas por discordar da cena do estupro, acabou sendo substituído por Jay Presson Allen, que se mostrou muito mais flexível as vontades do mestre.
Tippi Hedren tem aqui o melhor desempenho de sua carreira. Descoberta por Hitchcock em um comercial de TV, teve sua grande chance ao estrelar Os Pássaros (The Birds, 1963), o projeto mais ambicioso do cineasta, que sucedeu seu grande êxito Psicose (Psycho, 1960). Marnie é uma personagem complexa, e exigiu de Hedren vários momentos dramáticos intensos, e embora exagere um pouco nas expressões, deu conta do recado. A atuação de Louise Latham como Bernice é pouco comentada, mas sem dúvida merece atenção, principalmente na resolução final, num verdadeiro duelo entre mãe e filha. Sean Connery empresta seu carisma e vigor masculino a Mark Rutland, tendo boa química com Hedren, embora o romance não empolgue, muito por culpa do roteiro.
A técnica do filme é primorosa, desde a simbólica fotografia de Robert Burks no uso das cores (em seu último trabalho para Hitch, vindo a falecer um ano depois), a montagem criativa de George Tomasini e a trilha sonora belíssima de Bernard Hermann, que nos remete ao seu melhor trabalho, Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958). A maquiagem, os figurinos e a direção de arte foram criticados pelo anacronismo à época de seu lançamento, embora tenha sido intencional, num resgate ao cinema clássico, que vinha perdendo espaço para produções mais realistas e experimentais dos anos 60, fechando aqui um ciclo em sua filmografia que perdurou por mais de 20 anos.
Marnie talvez não seja uma das maiores obras-primas de Hitchcock, mas sem dúvida merece atenção por sua ousadia temática e apuro técnico, a abordagem freudiana ou por apresentar momentos de pura tensão (o furto na empresa, o acidente com Forio, a recepção dos convidados na festa, o duelo final), ou de beleza ímpar (o primeiro beijo do casal), que demonstram toda a genialidade e sensibilidade do realizador londrino. Como disse um famoso historiador da obra do cineasta certa vez, se você não gosta de Marnie, certamente não curte Hitchcock, afinal é este seu projeto mais íntimo e pessoal.
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