Quando Del Toro anunciou seu novo filme, disse que era somente uma história de paixão, sem muito além disso. Óbvio que ao se tratar de Guilermo, as coisas não iriam parar aí, e foi exatamente isso. Temos em "A Forma da Água", um filme que aborda preconceitos, diferenças, machismo, política, os maltratos de indústrias com animais que são usados para testes, tudo de forma sutil, sem ser forçado ou caricato em momento algum. Claro que a paixão se faz presente ali, não somente ao se referir que sim, é uma história de amor, mas também de uma paixão de seu autor à sua arte, e no final entregando um filme poético, mas ao mesmo tempo, forte em suas críticas.
Del Toro usa os anos 60 para contar sua história, obviamente fazendo um reflexo da nossa atual sociedade em todos os pontos que o longa pretende por o dedo na ferida, e aqui se faz o trabalho magistral da direção, pois em outras ocasiões, tudo poderia sair uma lambança amontoada de efeitos, personagens com caretas e diálogos pífios, mas ao contrário disso, temos tudo de forma branda, que afunda o dedo nas feridas podres que se escondem atrás de cargos, de status, de cor e de patentes.
Após uma criatura estranha ser encontrada na Amazônia, está é levada à um laboratório onde seu propósito é ser estudada, até mesmo dissecado se necessário para pesquisas de diversos tipos, inclusive espaciais, e nesse momento, uma serviçal muda passa a ter contado com o ser, e vê que este não se trata de um monstro, mas alguém que se comunica e pode até mesmo ter sentimentos.
A premissa não é diferente de milhões de histórias que se tem por aí, então por qual motivo dar uma chance ao filme? Por ser Guilermo Del Toro à frente, e tendo O Labirinto do Fauno em seu currículo, há de se esperar que não se verá mais do mesmo ali e que tudo não irá se resumir à algo bobo e repetitivo. E realmente a direção é precisa, conta a história em seu tempo correto, sem soar forçada ou sem credibilidade, a confiança do monstro em Elisa é gradativa, nunca parecer ser por ser, assim como a construção do vilão também vai caminhando aos poucos, mesmo que desde o início sabermos de quem se trata.
O elenco brilha aqui. O casal principal está espetacular, Sally Hawkins se entrega ao papel, fica nua em tela, mostra como é se sentir deslocada do mundo e de todos por sua anormalidade, e passa isso com uma veracidade que a faz realmente se parecer com uma muda, e a criatura, interpretada de forma magistral por Doug Jones, conhecido por trabalhos do tipo, inclusive com o próprio Toro, seja sendo o Fauno ou a também criatura marítima de Hellboy, que muito se assemelha com a vista aqui. Este mesmo coberto de maquiagem e fantasias, se mostra um tanto expressivo, sabemos cada sentimento que o monstro passa sem ele proferir uma única palavra. Michael Shannon brilha também como o vilão da vez, e o constrói de forma incrível, melhor do que qualquer vilão de filme de HQ dos últimos tempos, cobertos de efeitos e maquiagem, diferente disso, Shannon usa somente sua expressão para impor terror naqueles que o cercam e pretendem impedir seus planos, não por ordem de superiores ou algo parecido, mas por seu próprio ego, que à todo montento deixa claro como se vê acima de todos a sua volta, e ser contrariado, não é algo que ele deseja, esperava que lhe rendesse alguma indicação ao Oscar. Valem ainda menções à Octavia Spencer, a outra serviçal do local que ajuda Elisa em seu plano de resgate.
Como dito, o filme é um crítica ferrenha a padrões sociais que naquela época eram escancarados, e hoje, mesmo um pouco amenizados ainda se fazem presentes, como o machismo, que é representado à todo o momento pela relação de Zelda e seu marido. A moça durante quase todo o filme relata durante as horas de trabalho, que seu marido só reclama e a faz realizar tarefas para satisfazer o mesmo em sua casa, isso fica evidente quando em uma única cena, o casal aparece em sua casa, com ainda a mulher trabalhando enquanto o marido assiste à TV, nessa hora, Strickland invade a casa, e o marido de Zelda se mostra só mais um covarde que se escondia atrás da brutalidade com a mulher, como diversos casos hoje são iguais. A alcunha política também está ali, ilustrada pela megalomania das corridas espaciais entre russos e americanos, e sem nenhum limite para quem pode chegar na frente de quem, e atrelado à isso, mostra-se a não importância a vida, em prol de um suposto bem maior, sem delongas, matam aquilo que lhes parece sem importância e descartável. Os preconceitos também estão lá, visto como o único amigo de Elisa, Giles é super bem atendido em uma lanchonete, até ser descoberto gay, e é expulso do local em nome dos bons costumes e da família.
Esses são somente alguns dos pontos que A forma da Água tem para nos entregar, se fosse esmiúçar um à um, teria de dividir o texto em três partes. Não se trata do filme perfeito, contém alguns deslizes, mas tais não são necessários comentar aqui diante do resultado final, que se mostra um dos mais belos filmes feitos nos últimos anos. Cinema feito com paixão e para a paixão.
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