Show de horrores, com mostras de pessoas deformadas ou com algum problema físico, eram corriqueiros em circos e até em lugares fixos, como um bairro em Londres, ano de 1810, onde havia pequenos teatros exibindo anões, mulheres barbadas, e entre eles, uma em especial chamou a atenção tanto em vida como pós morte, era Sarah Baartman, ou, como o nome que era “vendida”, a Vênus Hotentote.
É nela que o filme vai focar, durante seu longos minutos, 2h40 para ser exato, vemos como o limite entre curiosidade e humilhação é quebrado. Saartje é exposta como um ser animalesco, presa em uma jaula, vestindo uma roupa que mais lhe expõe do que esconde, ela é tratada como um verdadeiro animal, sendo “domada” por seu mestre, Hendrick Caesar, que com promessas de sucesso, consegue fazer a moça sempre estar disposta a encarar mais uma vez o palco.
No decorrer do longa, vamos tendo um misto de várias sensações não muito agradáveis, pois a personagem principal é abusada de todas as formas possíveis. Mais conhecido por trazer ao mundo, “Azul é a Cor Mais Quente”, de 2013, que causou bastante polêmica naquele ano ao tratar do amor entre duas jovens, e construir umas das cenas de sexo mais comentadas no cinemas contemporâneo, o diretor Abdellatif Kechiche, conduz nossos olhares para cenas verdadeiramente indigestas e incômodas, como a cena em que Sarah faz uma apresentação dentro de uma casa de prazeres, a cena é longa, incomoda e acaba se arrastando, mesmo que essa seja a intenção do diretor, esse fator acaba tirando um pouco de um melhor rendimento do filme, que se torna cansativo e não sendo uma experiência tão fácil, aliado ao ritmo lento.
Além de contar a história de Sartjie, Kechiche traz em seu trabalho, um contraponto com uma história que se passou no século XIX com os dias atuais, pois o preconceito ainda se mostra bastante ativo dentro de nossa sociedade. Óbvio que não temos mais exibições de show desse tipo, pelo menos não diretamente, mas, me arriscando a fazer um paralelo, uma das principais razões para que a jovem fosse exposta era o tamanho de sua nádega, pessoas precisavam tocar para acreditar ser real e não travesseiros, como seu “patrão” diz em uma cena, e hoje em dia, não temos uma depreciação do corpo da mulher negra, onde o Carnaval se torna o palco de exibição e pessoas escolher qual é a maior nádega a desfilar, ou qual peito mais balança enquanto ela samba?
Outro ponto que fica evidente no filme, é quanto a relação que é criada entre Caesar e Sarah, que elucida bastante como eram as mesmas num período de escravidão, e em muito casos ainda hoje, principalmente na condição de empregada doméstica. A relação paternalista que o homem tenta passar, consegue convencer muitas vezes a própria mulher, tanto que coagida, em um julgamento Sartje afirma que não se trata de algo escravo/senhor, mesmo sofrendo todas as humilhações de um, ela era explorada, abusada, agredida quando tentava se impor.
Em um determinado momento, Sarah é entregue à mãos de acadêmicos para que esta seja estudada, e é onde vemos como o preconceito tinha um suporte e enorme pela própria ciência. A todo momento, os que a investigam, a tratam como a não um ser humano, mas fazendo comparações com macacos, devido ao seu físico e algumas modificações que sofre no decorrer dos anos, inclusive ao desfecho da história, ela volta a mão dessas mesmas pessoas, e o que se vê é o verdadeiro show de horrores.
Tecnicamente falando, o filme tem uma fotografia cinzenta, para passar a sensação de frieza que se te por ali, que casa perfeitamente com a atuação da estreante, Yahima Torres, trabalho que lhe rendeu indicação ao prêmio “César de Atriz Revelação”, em 2011. O olhar apático durante toda a projeção, nos coloca a par de todo o sofrimento pela qual a verdadeira Sartje passou, e nos joga naquele mundo de angústia e dor, ao qual ela só encontrava refúgio em bebedeiras. Essa era a forma que conseguia aguentar toda a pressão que vivia, todas as mazelas e humilhações. Yahima engole o filme todo para si, sendo o verdadeiro destaque ali, pois, aliado à cenas que nos fazem remexer na cadeira durante a exibição, como a já citada cena dentro de um bordel, onde ela tem seu sexo exposto, e todos ali dentro querem ver ou tocar, começa então um alvoroço ao redor, e no meio disso, temos uma pessoa chorando, cedendo as pressões, finalmente chegando ao fundo do poço na decadência moral ao que lhe jogaram em nome do dinheiro, e mesmo quando mostra esses traços humanos, seu novo “patrão” não q compreende, e a reprime de forma violenta por ser uma pessoa, e quando neste papel, ela não serve mais. Os demais que compõem o elenco, acabam servindo mesmo de escada para a protagonista, não desenvolvendo muito além do mais do mesmo, em algumas atuações até caricatas.
“Vênus Negra” não é perfeito, comete gafes, como sua longa duração já falada aqui, cenas longas e desnecessárias, como a que uma canção é entoada dentro de uma taberna, ou em alguns cortes que são um pouco confusos, talvez até com intenção, mas ainda assim, que nos tiram o foco. Mas é antes de tudo um filme biográfico, e que vai muito além em sua concepção. Nos joga dentro desse mundo cruel, da sociedade perfeita que impõe padrões e animaliza aquilo que não lhe é normal. Das pessoas que tiram a humanidade de outras, sem pudor algum em nome do dinheiro. Nos insere num mundo onde passado se choca com o presente em várias situações cotidianas, onde parece ser normalidade tais atos e passam despercebidos de nossos olhos.
Talvez, por isso seja tão incômodo assistir ao filme, pois ali, pelo menos durante seus minutos, temos um pouco da noção do que é esse mundo sujo e condenador... Talvez.
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