Trata-se de um exemplar que ficou relativamente esquecido no tempo, em seus cada vez mais longínquos anos 1990. Fazendo uma apresentação morna em solo americano e com até mesmo uma boa recepção inicial na Europa, onde o filme parece ter tido mais força no seu recebimento, não ganhou prêmios lá muito relevantes para o grande público e para o mercado do cinema, deixando-o um pouco na sombra da época dos grandes filmes do enigmático cineasta iugoslavo/sérvio Emir Kusturica. Na mesma época, o cineasta foi convidado por um conterrâneo (acho que posso chamá-lo assim) tchecoslovaco, Milos Forman, para substituí-lo como professor em uma faculdade de cinema em Nova Iorque, tamanho era o respeito que colocava em solo internacional como artista. Modéstia à parte, Kusturica acabou sendo um dos grandes cineastas de sua geração, em uma época onde o cinema internacional explodiu em criatividade, em um contexto de caos econômico, desenvolvimento tecnológico e aparecimento do cinema cada vez mais independente.
Em sua época Arizona Dream (1993) contou com um conjunto interessante de antigas estrelas do cinema estado-unidense com uma classe de estrelas adjacentes e em estado aflorante. Por isso encontramos Axel (com um já familiarizado Johhny Depp nas telonas) e Paul Leger (Vicent Gallo) contracenando com uma instável Elaine (Faye Dunaway) e um sonhador empresário Leo (Jerry Lewis). A narrativa de Kusturica se amarra em um roteiro linear, mas que de coerente não tem absolutamente nada. Visto de maneira superficial, podemos nos fazer acreditar que é realmente um filme sobre um jovem que sai de Nova Iorque e acaba parando acidentalmente no Arizona onde lá, depois de algumas tentativas de uma nova vida, acaba conhecendo uma mulher mais velha e termina se apaixonando por esta, que sofre diversos problemas mentais e emocionais. Tudo isso seria e poderia ser simples e finito, caso não houvesse uma grande estrutura de deturpar uma narrativa que poderia ser normal, mas acaba pendendo até mesmo para o surrealismo e a fantasia. No caso de Arizona Dream, o barato do cineasta sérvio parece ser mesmo simplesmente implantar o caos em uma narrativa aparentemente clichê e corromper toda a sua “inocência” linear e coerente.
Não é novidade para quem conhece a filmografia do diretor entender que trata-se de um grande poeta cênico. O importante de suas simbologias, realmente, é que elas não são apenas para ser, possuem um grande significado, algumas vezes político, como é o caso da cena final – belíssima e inesquecível – de Underground – Mentiras de Guerra (1995), vencedor principal em Cannes. E também faz jus ao título o substantivo “Dream”. Praticamente todos os personagens são sonhadores, até mesmo pendendo para o excesso. A cena inicial é um sonho. Os momentos mais peculiares são relativos a interpretações da interpretação no filme, a absurdos de aventureiros e a tentativa de realização de sonhos até então reprimidos. Em certa ocasião, é somente a morte que liberta o tal sonho oprimido.
Por isso Arizona Dream é um filme libertário, ainda que não pareça expôr esse sentimento ao telespectador. A sua conduta é de um filme Sessão da Tarde com tudo aquilo que um filme europeu pesado e filosófico possui – parece haver vários cinemas dentro de Arizona Dream, como se fosse uma mistura doida de vários cineastas dos anos 1980, enlatados e batidos em um só. Indo desde a condição humana ao humor pastelão, ele tem uma forma muito doidona de colocar os seus sonhos pessoais acima de tudo, e também uma forma sarcástica e anárquica (praticamente em sentido político) de criticá-los, tornando-os corruptos, sem objetivos e bobos. Ainda assim, sempre da forma mais elegante possível, um tapa em luva de veludo.
Muito se critica e muito se criticou a dinheirama investida em Arizona Dream, o sonho de qualquer cineasta fora do radar geográfico do imperialismo dos EUA, de fato, mas eu - que além de ver uma grande desnecessidade tanto investimento (sério que não dava para fazer um filme desses em pequeno orçamento?), embora entenda que utiliza-se de efeitos visuais caros para a época - aprovei absolutamente o resultado ao subir dos créditos. É no fim das contas, um filme que eu gosto. Um estilo maluco de fazer rir, que em outros momentos faz ficar apreensivo e parece dizer diversas coisas sobre nós e o nosso mundo, a nossa sociedade. Quem assiste nunca sabe o que vai acontecer a seguir, nunca sabe se todos ali ainda estarão vivos e ainda temos que aturar (no bom sentido) cenas que de tão patéticas são imensas de engraçadas, como a reencenação de Intriga Internacional (North by Northwest, 1951) de Alfred Hitchcock. É um grande balde de surpresas, que ainda pega você completamente desprevenido com cenas que até lembram um filme do russo Andrei Tarkovsky, com mesas, cadeiras e pessoas flutuando através de seus sentimentos e desejos por um espaço doméstico. Não posso classificar os problemas que Kusturica teve ao picotar a sua versão original de 4 horas, e também achei ótimo que no ano seguinte tenha voltado a sua terra natal, mas Arizona Dream está longe de ser um fracasso, seus peixes voadores não me deixam mentir.
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