Uma vida de cão é o que vemos em Dogman, selecionado italiano para uma bela disputa no Oscar Estrangeiro de 2019 e vencedor do prêmio de Melhor Ator em Cannes. Para muitos críticos italianos, ele foi definido como um filme “sobre a solidão de um homem bom”, em uma visão interessante dos conterrâneos. De fato, Dogman é um filme triste.
Dirigido por Matteo Garrone e levado pela grande atuação de Marcello Fonte, o filme é baseado em um acontecimento real, na capital italiana Roma, em 1988, onde Pietro de Negri, proprietário de um pequeno salão de beleza para cães (petshop, como hoje se chama), assim como em Dogman, matou e queimou um homem que importunava-o. Giancarlo Ricci, ex-boxeador, torturava psicologicamente de Negri, até que acabou inflando as possibilidades e foi assassinado. Tornou-se um caso famoso no país e virando até disputa de memória coletiva.
Marcello está no limite da miséria em um dos países mais charmosos do continente mais elegante do planeta, trabalha em um lugar abandonado na beira da praia, este lugar, outrora parece ter sido um lugar de pujança econômica: brinquedos de diversos tipos, elegantemente apodrecem no tempo. A infraestrutura do local, de forma geral também apodrece, e não é só isso a parte decadente do cenário. Também são os seus homens (já que a figura masculina é predominante em Dogman), um processo de decadência visível pela forma com que tratam os seus problemas, utilizando cada vez mais a violência física e psicológica do que a palavra em si.
Em alguns sentidos, Dogman me lembrou o também italiano Gomorra de 2008, filme italiano que fez um relativo sucesso internacional por trazer a tona problemas que a Itália parece fazer de tudo para esquecer, destrinchando por dentro a máfia napolitana. Problemas periféricos típicos de uma nação desenvolvida. Até eu descobrir que, tratava-se do mesmo cineasta Matteo Garrone. Não parecia mera coincidência toda aquela decadência dissolvida no tráfico de drogas através de um homem comum, que parece ter perdido tudo, menos a sua humanidade, e não era.
E o ator Marcello que interpreta o cuidador de animais, também Marcello representa exatamente isso: um humanista, ao final das contas. Porque quando ocorre o assassinato, que a própria capa de divulgação do filme já evidencia, o homem parece perder a si mesmo, perdendo a própria noção de sua realidade. Já não era mais o mesmo e já fazia parte daquele cenário desolador de infâmias. Quando observa seus amigos jogando futebol – amigos estes que nunca foram vistos tendo uma conversa relevante com Marcello -, que na verdade não estavam lá, Marcello se torna só mais um daqueles brinquedos antigos apodrecendo no tempo. Já não resta aquilo que o tornava único naquele lugar desolador, que era o seu senso de humanidade profunda.
O elenco canino também ganhou em Cannes, a curiosa e engraçada Palm Dog, entregue desde 2001 para melhor atuação canina ou de grupo de cães. Estes, aliás, eram o escape de Marcello para o mundo que o cercava. Embora tratasse os cães com a mesma dignidade que tratava a qualquer um, estes eram os únicos que não lhe traziam nenhum mal, ainda que estivessem enjaulados. Era como a relação patológica de Marcello com o seu amigo Simone (o também ótimo Edoardo Pesce), completamente o oposto da gentileza e bondade de Marcello, contradição que fica ainda mais ambígua com a proximidade dos dois.
Capaz de passar até mesmo um ano na cadeia por causa de Simone, por respeito, por medo ou por amizade, isso nunca saberemos. Nessa sua vida marginal de homem moderno, retratada já com experiência por Matteo Garrone e seus cinzas, com azuis e ocre, é sempre difícil delimitar quando temos um dominado e um dominante, as feras não são sempre as que agem de forma primitiva, poderíamos tirar de lição. Com seus 50 anos de vida, o cineasta romano entrega um trabalho brutal, desolador e realista, como o bom cinema italiano sempre mostrou.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário