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Uma introdução a respeito do lugar das séries no século XXI

Se você assiste televisão (e, para todos os fins, televisão, nesse texto, fará referência apenas à produção de entretenimento no prime time da tv norte-americana) há cerca de dez anos, certamente já trombou por aí com discursos de desprezo em relação aos atributos técnicos e/ou artísticos do que é produzido para ela. Isso não acontecia por acaso. Historicamente, a televisão se encarregava de preencher apenas um pequeno espaço da sombra que o cinema projetava em termos de entretenimento audiovisual: os filmes feito para a tv geralmente eram piores e mais baratos; os atores de televisão geralmente eram menos talentosos e menos bonitos, etc.

Hoje em dia já não é mais assim, e faz todo o sentido o Cineplayers, que há mais de dez anos se ocupa em analisar cinema, abrir espaço também para séries. O panorama cinematográfico americano também realizou essa abertura. Os três últimos apresentadores do Academy Awards, por exemplo, são personalidades provenientes da televisão, e provavelmente o apresentador de 2016 também o será (uma aposta cega: Jimmy Fallon). Algumas das celebridades mais bem cotadas nos últimos anos também vieram da tv: Melissa McCarthy, Chris Pratt, Kristen Wigg, Tina Fey, Steve Carrell, George Clooney, Benedict Cumberbatch, etc.

O sucesso dessas personalidades não é por acaso. A força criativa por trás das séries de televisão tem sido, em muitos exemplos, formada por escritores, diretores e produtores rejeitados pela impetuosa indústria do cinema. Nos dias de hoje, jovens diretores de cinema em ascensão são cada vez mais coadjuvantes, ao mesmo tempo em que showrunners de séries são cada vez mais grandes estrelas. O exemplo mais claro desse novo momento provavelmente é Vince Gilligan. Roteirista de alguns episódios de Arquivo X, Gilligan tentou brevemente esgueirar-se para dentro de Hollywood e, farto de bater a testa em portas fechadas, criou um piloto e produziu uma série relativamente barata para um canal de televisão recém-formatado, sem a pompa e repercussão que uma grande emissora de tv poderia fornecer, mas empossado de carta branca criativa.

Por alguns anos, Gilligan permaneceu anônimo, e sua série de tv, pouco vista. E então, repentinamente, criador e criatura explodiram e repercutiram: já estava em voga o fenômeno de Breaking Bad.

Essa nova fase da televisão é geralmente atribuida à transformação do canal a cabo HBO em produtor de seriados. Em 1997 estrearia a primeira série original da emissora, Oz, narrando o cotidiano de uma penitenciária de segurança máxima. O forte realismo intensificado pela violência e pelo sexo só foi possível devido uma despressurização da censura na televisão, especialmente nos canais à cabo. Oz foi um dos primeiros programas a exibir palavrões, nudez masculina, sexo explícito e a discursar abertamente sobre drogas, homossexualidade e violência. O ineditismo certamente contribuiu para o sucesso e a série foi exportada para dezenas de países, inclusive para o Brasil, onde fora exibida pelo SBT.

À exemplo de Oz, algumas outras séries foram lançadas pela HBO, garantindo uma consistência qualitativa à programação do canal, para diferentes nichos de espectadores. Sex and the City, À Sete Palmos, Curb Your Enthusiasm, Carnivale, Roma, Amor Imenso e True Blood são alguns exemplos.

Mas, em termos de legado, há três produções da emissora que são especialmente fundamentais.

Foi realmente com Família Sopranos, em 1999, que a televisão deu o passo definitivo para essa nova fase. A série criada por David Chase fala sobre um líder mafioso ítalo-americano que enfrenta uma crise de depressão e, entre uns e outros negócios habituais, frequenta sessões de terapia. Família Soprano é apontado como a gênese de todo o processo de desconstrução do moralismo habitual na televisão, aproximando a tv do realismo pungente característico de grandes obras do cinema. Não por acaso que a série faz menção de um tema que Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, dois dos maiores diretores do cinema moderno americano entronizaram. Chase, num exercício humanista, coloca na essência de sua obra a linguagem e a história do cinema e, através dessa inspiração, cria, numa formatação inédita, aquilo que mais marcou a presença de Família Sopranos na televisão: os arcos lentos que exploram a ambiguidade moral dos acontecimentos, o desenvolvimento paulatino dos personagens e o realismo explícito da ação.

O legado de Família Soprano é da ordem da influência. Nenhuma outra série criou um fenomêno de inspiração em narrativa, método e estrutura como a obra de Chase, exibida de 1999 à 2007. A queda do homem e, por consequência do heroi da narrativa, tao elementar em séries de sucesso nos últimos dez anos (House ou Dexter, por exemplo) é geralmente atribuida à figura de Tony, um sociopata perverso que encontra espaço para escancarar sua personalidade protagonizando a série da HBO. O personagem de James Gandolfini ditou a tendência capital para o arquétipo do herói na televisão: homens brancos de meia idade frente a frente com conflitos pessoais e profissionais que revelam camadas e mais camadas das imperfeições que esses personagens possuem, secretamentes ou não, dentro de si.

Mas se Família Soprano é o Cidadão Kane da televisão, A Escuta é mais ou menos como se Stanley Kubrick tivesse feito todos os seus treze filmes de uma vez só. Poucas vezes se teve notícia de uma obra amplamente apreciada e elogiada como a série de David Simon.

Simon nasceu em 1960, trabalhou grande parte de sua vida como jornalista, aposentando-se voluntariamente da profissão para dedicar-se integralmente à escrita. Em 1991 publicou Homicide: A Year on the Killing Streets, com relativo sucesso. Dois anos mais tarde a emissora NBC adaptaria o livro de Simon, contratando-o como colaborador oficial. Embora tenha declarado satisfação com a adaptação, o autor considerava que o realismo era posto "de lado na construção dramática da ação". Homicide: Life on the Street ainda era convencional demais.

Somente em 2002 Simon conseguiria finalmente levar cabo do seu mais ambicioso projeto: uma série onde todos os personagens, embora grandiosos, são eternos coadjuvantes circundantes do único protagonista possível: a cidade de Baltmore. Na série, a polícia inicia uma desinsteressada investigação com o objetivo de angariar provas para prender os traficantes locais - mera desculpa para que Simon, ao lado de seus talentosos escritores pudessem destrinchar e dissecar uma metrópole consumida pela burocracia, corrupção e falências, humanas e institucionais. Seguindo os passos de Família Soprano, A Escuta se estrutura por temporadas que se encerram em si, desenvolvendo e fechando arcos a cada 13 episódios. As drogas, os guetos, as escolas, as repartições públicas, as instituições sociais, os jornais... as lentes docu-dramáticas de A Escuta registram Baltmore, ao lado de seus mais de 50 personagens, transformando-a em heroína moribunda de um grande romance americano.

Das numerosas semelhanças guardadas por Família Soprano e A Escuta, uma especificamente parecia incomodar profundamente a HBO. Com uma prateleira lotada dos mais diversos e prestigiados prêmios, com páginas e mais páginas de revistas, jornais, blogs e etc rasgando infindáveis elogios à sua programação original, ainda faltava à HBO um seriado que fosse imediatamente um fenômeno de audiência.

Para atender essa demanda os executivos do canal resolvem comprar os direitos de adaptação da ainda desconhecida (para grande parte das pessoas) série de livros de George R. R. Martin, Game of Thrones, narrativa de proporções épicas situada em um universo medieval fantástico, onde grupos diferentes conspiram para tomar o poder de Westeros, a capital do reino.

A história de Game of Thrones é ambiciosa, os acontecimentos desenrolam-se paralelamente em ritmo paciente, oferecendo ao espectador a possibilidade de tornar-se íntimo das ordens políticas e sociais do universo imaginado por R. R. Martin, das dezenas de personagens que compõem o delicado tecido humano da série, que é acima de tudo uma narrativa de conspiração política, ao contrário do que se poderia imaginar pela observação de teasers e cartazes. Game of Thrones oferece o arsenal estético da HBO - nudez, sexo, violência, linguagem inapropriada, discussão de temas maduros - dentro de uma estrutura de narrativa fantástica popularizada por Harry Potter e Senhor dos Anéis.

A quarta temporada de Game of Thrones, exibida ano passado, rendeu uma média de 6 milhões de espectadores. Desde a primeira temporada, os números continuam a impressionar a HBO, que conseguiu finalmente formatar um programa que pudesse ser amplamente popular mantendo-se fiel ao selo que qualidade que a emisorra tanto preza.

Os números absolutos podem mentir. A última temporada de Sopranos, exibida em 2006, conseguiu uma média de 8 milhões de espectadores. Essa medida é utilizada por todas as emissoras de televisão dos Estados Unidos para se medir audiência e é conhecida como Nielsen Ratings. O método Nielsen, porém, anda sendo levado cada vez menos em conta pelas emissoras, simplesmente porque virtualmente ninguém mais assiste televisão da maneira convencional. Para fins de comparação, o último episódio de Dexter, uma das séries recentes que atingiu mais popularidade, foi de 2.800 milhões de espectadores, cerca de 3 vezes menos o que o último episódio de Game of Thrones conseguiu.

Mas o dado empirico mais confiável para atestar o sucesso de Game Of Thrones é a simples observação que qualquer um pode fazer ao navegar no twitter, facebook ou outra rede social em um dia que a série esteja sendo exibida. O que se consegue perceber é a sucção completa da cultura popular direcionada a um fenômeno, pré-formatado justamente para esses fins.

Essas três séries brevemente analisadas, juntamente com dezenas de outras, ajudaram a fomentar o cenário do entretenimento popular da maneira que ele existe hoje, no começo de 2015. As séries de televisão não existem mais como a baixa cultura daquilo que é produzido no cinema, mas uma cultura independente e valiosa por si só, legitimada por críticos, especializados ou não, e principalmente pela audiência, que se torna cada vez mais sofisticada e atenta a esses fenônemos. Em um mundo onde nao existem mais locadoras, onde Netflix e Amazon começam a produzir séries de tv por conta própria, o futuro torna-se intrigante, imprevisível. E todos nós fazemos parte dele.

Comentários (4)

Abdias Terceiro | segunda-feira, 16 de Março de 2015 - 04:29

Maravilha essa atenção dada as Series... E o breve histórico é muito esclarecedor 👍

Landerson DSP | sexta-feira, 12 de Fevereiro de 2016 - 23:38

Deu até arrepio na espinha ao ler.

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