O fascínio do horror.
Entre tantas outras coisas, a morte de George Andrew Romero, bem como a de Michael Cimino no mês de julho do ano passado, nos deixa entristecidos ao constatarmos que a velha e grande geração da Nova Hollywood começa a desaparecer. Um pessoal que conhecemos desde muito novos, nos tornamos cinéfilos com eles. Difícil imaginar o mundo sem a perspectiva por mais um de seus trabalhos. Da mesma forma que somos capazes de lembrar não só da primeira vez que vimos muitos dos clássicos dessa turma, mas sobretudo da expectativa em assisti-los nos tempos mais remotos da relação que cultivamos com os filmes. O que sempre levaremos conosco.
Romero foi parte e ao mesmo tempo à margem da Nova Hollywood. Nunca precisou da etiqueta com o nome desse importante movimento do cinema americano para se impor e perdurar como autor, ainda que surgindo em simultâneo aos seus colegas mais ilustres de geração. Uma das distinções é que enquanto esses outros diretores bebiam da influência e referência ao cinema europeu, Romero trilhava um caminho aberto por representantes de cinema gore no começo da década de sessenta (como Herschell Gordon Lewis). Impedindo que suas obras se reduzissem a elementos trashs, e sabiamente trabalhando com temas e materiais que em outras mãos podiam ser desperdiçados em soluções das mais fáceis em meio ao processo criativo, mas que com Romero eram notavelmente transcendidos. Pode-se dizer que, se em décadas anteriores gênios do terror como Val Lewton e Jacques Tourneur concebiam grandes realizações no gênero por sobretudo trabalharem com a sugestão e o ocultamento, Romero foi um mestre na união do que esconder e sugestionar mesclado às imagens explicitas e sanguinolentas que se expandiam entre manifestações artísticas diversas na rebarba da revolução cultural e de costumes dos anos sessenta. Isso desde o seu primeiro longa, A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), que carrega ainda um gosto pela alegoria e crítica sociopolítica que não deve nada a qualquer artista de seu tempo. Mas sem transformá-lo em panfleto, e nem perder a força e o caráter de invenção. Ele próprio abria caminho para que durante a Nova Hollywood surgisse uma outra leva de diretores uns mais, outros menos bons, na grande criação e afinco ao gênero de horror, dentre os quais poderíamos citar nomes como Wes Craven e John Carpenter (seu primeiro êxito, Assalto à 13ª DP, era um cruzamento de Howard Hawks com o primeiro filme de Romero).
A Noite dos Mortos-Vivos inaugurou o que continua até os dias de hoje um sonho de se levantar uma grana, filmar com amigos uma produção baratíssima em torno de uma história de terror em cenários naturais e conquistar a admiração de platéias pelo mundo. Não é perfeito, longe disso; com mais experiência e dinheiro, ele depois faria melhor diversas vezes. Mas é um dos mais copiados, imitados e influentes filmes contando os de qualquer orçamento. Poucos podem se orgulhar de ter criado um gênero (ou subgênero, se preferirem), e que hoje é um dos que mais rende filmes e séries. Não que eles não houvessem anteriormente, mas é aqui que se forneceu as diretrizes de tudo que viria a ser filmado sobre zumbis e é provável que sem ele não haveria metade dos que foram feitos posteriores. Seu impacto foi acontecendo através dos anos após o lançamento, repercutindo especialmente nas sessões da meia-noite que ficaram famosas naquele período. Ganhou cores quando ocorreu a moda de clássicos em preto e branco serem colorizados, e vinte e dois anos após a estréia teve uma refilmagem oficial com outro diretor, Tom Savini, parceiro de Romero na criação de maquiagem e efeitos especiais em seus filmes.
O talento de George A. Romero foi responsável para que sua futura e relevante filmografia não se tornasse restrita a esse seu mais notório trabalho. As experiências seguintes com baixíssimo orçamento foram mal-sucedidas: o drama There's Always Vanilla (1971) ─ que ele considera o seu pior filme ─ e um retorno ao terror A Estação da Bruxa (Hungry Wives, 1972), além de um documentário em média-metragem sobre o então astro de futebol americano O.J. Simpson. Mas logo ele diversificaria sua carreira de forma genial com o filme de epidemia O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973), um hibrido de filme de ação com elementos de horror e toques de ficção científica que nos leva a um cenário de guerra que o aproxima do conflito urbano atual travado entre a polícia e os agentes da violência de qualquer grande metrópole, somado a citações ao Vietnã (o padre botando fogo em si mesmo). E com Martin (idem, 1977), um dos melhores filmes sobre vampirismo, também um pessimista, cru e direto filme de adolescente, ao mesmo tempo delicado e selvagem, como os personagens deslocados e introspectivos do Robert Bresson tardio. Jovens por fora, mas irremediavelmente velhos e corroídos por dentro. E o que é o personagem-título senão um morto-vivo caminhando à luz do dia e igualmente fugindo da multidão? A trinca de obras-primas de Romero na década de setenta se completaria com um retorno aos zumbis em Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978), que contou com o apoio dos irmãos Dario e Claudio Argento, transpondo a temática para uma crítica ao consumismo e ao mundo moderno como um grande shopping center, e ainda mais imaginativo e visceral na violência gráfica. Talvez o ponto alto da sua carreira.
Mas imaginativo é o que Romero nunca deixou de ser. Cavaleiros de Aço (Knightriders, 1981) reinterpreta os filmes de gangues então em voga na época, tipo Warriors, recriando os torneios medievais em que os integrantes, ao invés de cavalos, usam motocicletas, e se comportam como se fossem cavaleiros da Távola Redonda, enquanto Instinto Fatal (Monkey Shines, 1988) foi um dos tantos de seus filmes que tirou o sono de espectadores, com a macaca domesticada para ajudar um tetraplégico, mas que devido às experiências cientificas as quais fora submetida, se torna uma criatura belicosa. Dá prosseguimento à série dos zumbis canibais em Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985), com militares e cientistas em abrigos subterrâneos enquanto os mortos caminham pela Terra. E estabelece eventuais parcerias com outros mestres do gênero: filma histórias de Stephen King em Creepshow - Show de Horrores (Creepshow, 1982) e, bem menos inspirado, divide Dois Olhos Satânicos (Due occhi diabolici, 1990) com Dario Argento, cada um adaptando contos de Edgar Allan Poe.
Os anos noventa não lhe renderiam muito em termos de cinema. A Metade Negra (The Dark Half, 1993), novamente a partir de Stephen King, e A Máscara do Terror (Bruiser, 2000) raramente impressionam mesmo aos fãs mais empedernidos do realizador. Com a redescoberta e idolatria por parte de novas gerações, e seus maiores clássicos refilmados no século XXI, Romero se volta em definitivo aos zumbis. Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005) surpreendeu pelo vigor absolutamente renovado se apresentando como um dos ápices de toda a sua filmografia. Diário dos Mortos (Diary of the Dead, 2007) aproveita o contexto de mais uma revolução, a do digital sepultando o analógico, e a realidade se confundindo cada vez mais com a ficção enquanto registro. Terminou por ser seu testamento A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, 2009), um tanto ignorado até mesmo por admiradores do cineasta, mas que sofreu por ser lançado num momento em que o gênero de horror passa por uma crise da qual não tem escapado nenhum dos mestres ainda em atividade, e produções B não cabendo mais nas salas com plateias entorpecidas com séries de TV ou com o olhar viciado nos multiplex ou IMAX. Com a morte de Romero um ciclo de cinquenta anos após o seu primeiro filme se cumpre. Desde o aparecimento do qual nunca mais veríamos cinema da mesma maneira.