O gênio proscrito da Nova Hollywood.
O mais talentoso discípulo de Clint Eastwood. Hoje ninguém pensaria em Michael Cimino dessa forma, e tampouco se deve reduzi-lo a tanto, mas quando Clint voltou consagrado de seus faroestes da Itália, e fundou na América a produtora Malpaso, cercou-se de talentos veteranos e outros emergentes. Cimino foi um desses pupilos, primeiro como roteirista, ganhando também pelas mãos de Clint a oportunidade de dirigir seu primeiro filme.
Nascido em Nova York, estudou em Yale, mas seu histórico acadêmico nunca seria comprovado. Da mesma forma que se dizia cinco anos mais jovem do que realmente era, e desde cedo, assumiu-se mais interessado em arquitetura e pintura, uma influência que se reflete em seus filmes. Trabalhou em comerciais para a TV, e no cinema começa como roteirista de Corrida Silenciosa (1972), uma ficção cientifica séria dirigida pelo responsável dos efeitos especiais de 2001- Uma Odisséia no Espaço. Outro de seus roteiros, ficcionalizando a vida da recém-falecida Janis Joplin, seria aproveitado anos mais tarde como A Rosa (1979), de Mark Rydell. Mas foi Clint Easwtood que lhe abriria portas, depois de escrever a continuação de Dirty Harry em Magnum 44. Na época o astro de maior bilheteria do cinema, Clint proporcionou a chance para vários jovens diretores e estreantes, e entregou para Cimino a direção de O Último Golpe. Juntos escreveram o argumento. O Último Golpe combina elementos de fita policial e de roubo com road movie, e já apresenta algumas das obsessões posteriores do cinema de Cimino: o deslumbramento com as grandes paisagens como se estivesse filmando um western, a intensidade dos dramas humanos, e uma declarada referência a um dos clássicos de Douglas Sirk dos anos 50.
A repercussão favorável (Jeff Bridges chegou a receber uma indicação ao Oscar de coadjuvante) possibilitou um projeto maior, O Franco-Atirador (1978), simultaneamente às filmagens de Apocalypse Now por Francis Ford Coppola. Os atrasos e problemas de produção desse último permitiram que O Franco-Atirador se tornasse a primeira grande realização a tratar da guerra do Vietnã, embora Cimino insista que o filme seja menos sobre a guerra do que os destroços dela provocados nos homens. Há uma estrutura viscontiana, que pegue emprestado de Rocco e Seus Irmãos o formato de filme longo com três personagens masculinos bastante unidos, seus cotidianos e laços com família e namoradas, depois quebrados por uma contingência da qual não conseguem escapar. No caso, a guerra, e incluindo metáforas que parecem óbvias, mas que na tela se convertem em simbologias poderosas como a roleta russa e a caçada aos porcos (daí o título original) a representar a sua insanidade e loucura. Foi então que começaram os problemas. Críticos de esquerda acusaram o filme de racista (por supostamente tratar os asiáticos como animais) e de excessivamente patriótico. O que não impediu o sucesso nas bilheterias e a consagração com vários Oscars. O filme seria para sempre um marco do cinema americano dos anos setenta.
Numa época em que diretores contavam com liberdade notável por parte dos estúdios, tudo indicava que teria a oportunidade de fazer todos os filmes que sonhasse, e parece que os fez todos num só: O Portal do Paraíso (198o), esse filme-monstro, ao mesmo tempo abençoado e maldito, que relê na sua mistura de épico e western a história da violência com que se deu formação de seu país, com o tema espinhoso dos conflitos entre os barões de gado e imigrante eslavos. O filme custou quatro vezes mais que o planejado, e demorou um ano além do previsto para estrear. E novamente com uma estrutura viscontiana, somada a um toque à Peckinpah, entre Pat Garrett e Billy The Kid com o esplendor que remete à O Leopardo, outros dois filmes a tratarem dos conflitos e dificuldades de aristocracia e plebe dividirem o mesmo chão. O Portal do Paraíso sugere um museu ambulante da história do cinema, mas com uma assinatura toda particular, em que o diretor se esmera em seu paixão pela arquitetura e a pintura. Nenhum outro filme nos últimos quarenta anos provoca o mesmo choque estético ou possui tão belas imagens. O Portal do Paraíso possui um desenvolvimento de sua dramaturgia que avança em espiral, e se antes Cimino provocara a fúria dos ideólogos de esquerda, agora desagradaria os mais conservadores. Sua versão de quatro horas foi desfigurada pelos produtores para 149 minutos, que destruía completamente a concepção original e tampouco funcionava para atrair a atenção do público (há uma versão ainda maior e inédita de cinco horas). O prejuízo financeiro foi estrondoso, o maior da história do cinema em termos de custos e de rendimento. Os executivos responsáveis por darem carta branca a Cimino perderam seus cargos, a United Artists faliu e seria posteriormente vendida aos estúdios MGM, e a reputação do cineasta seria destruída, com a fama que nunca mais lhe abandonaria de excêntrico, irresponsável e megalomaníaco.
É bastante curioso que, no mesmo ano, o brasileiro Glauber Rocha vivia uma situação semelhante com o fracasso de A Idade da Terra (uma produção cara para os nossos padrões), incompreendido e taxado de louco. Ambos os filmes um tanto OVNIs na cinematografia da sua época ou de qualquer outra, só seriam visto por duas décadas em cópias mutiladas e com imagens esmaecidas, para em vinte e tantos anos seus verdadeiros valores serem resgatados por parte dos críticos e da cinefilia. O fracasso de O Portal do Paraíso coincide com o surgimento dos blockbusters, de uma mudança na mentalidade do público e de uma virada de jogo nas regras da indústria.
Outros filmes autorais de colegas americanos de Cimino também sofreriam prejuízos e rejeições no mesmo período. Mas nenhum deles se tornou um proscrito quanto ele próprio, como que pó herdeiro na seguinte linhagem de malditos Griffith-Stroheim-Welles-Cimino, todos expulsos e alijados de Hollywood depois de realizarem os melhores filmes de suas respectivas épocas, e impedidos de filmar por um longo tempo antes de morrerem. Cimino faria ainda quatro filmes nos dezesseis anos seguintes, a começar pelo soberbo O Ano do Dragão (1985), produzido pelo italiano Dino De Laurentiis, sob contrato que incluía uma clausula de que não estouraria um centavo do orçamento. Ainda assim, um dos pontos altos de sua filmografia.
Os problemas de produção reapareceriam em O Siciliano, com contribuição de Gore Vidal no roteiro e um cuidado com a narrativa e as imagens digno de um filme europeu (é um outro de Cimino que parece uma pintura), mas que o torna um objeto estranho para os padrões de filme de máfia hollywoodiano. Sua metragem original foi adulterada (circula atualmente uma versão director’s cut) e a recepção crítica e de público frustrantes para a adaptação de um best-seller de Mario Puzzo (o mesmo de O Poderoso Chefão). O que só aumentou o desprestígio do cineasta. Ele realizaria nos anos seguintes duas produções bastante modestas: Horas de Desespero (1990), seu trabalho mais fraco, ainda assim à altura do original de William Wyler, e Na Trilha do Sol (1996), que acabou sendo o seu canto de cisne.
Unanimemente ignorado na época de lançamento, Na Trilha do Sol vinte anos depois tem tido uma boa e justa reavaliação entre cinéfilos. Uma viagem de transformação espiritual, em um road movie rumo ao deserto americano, cuja grandiosidade das locações remete aos faroestes (especialmente nas sequências com os cavalos). E, um retorno ao lugares onde começou a se construir a civilização norte-americana (praticamente tema central em quase todos os filmes de Cimino), embate de duas forças antagônicas, e de quando estas se unem, entre elas a do jovem marginal (o selvagem) que vai se tornando mais humano aos nossos olhos à medida que sua saúde o degrada fisicamente. O ciclo do cinema de Michael Cimino se fechava duas décadas depois de Thunderbolt and Lightfoot.
Outras duas décadas transcorreriam desde então. O Portal do Paraíso é restaurado nesse tempo, e ao revê-lo, difícil não considerá-lo pelo que é: o melhor filme americano dos anos 80 (e que conta hoje com uma excelente cópia em disco lançada pela Criterion Collection). O que não ajudou a Cimino voltar ao cinema. Envolto em lendas e isolamento, um estranho ao mainstream. Tornou-se romancista na França e há poucos anos foi homenageado numa das edições do Festival de Veneza. Os filmes que sonhou ou poderia ter feito nesses anos são agora os filmes dos nossos sonhos. Como a adaptação do romance A Condição Humana, de André Malraux, cujo projeto com elenco internacional de peso chegou a ser noticiado há uns cinco anos pela imprensa, mas nunca saiu do papel. Em homenagem à Cimino, uma citação do livro de Malraux, que cairia bem a qualquer um de seus filmes: “O conhecimento de um ser é um sentimento negativo: o sentimento positivo, a realidade, é a angústia de se ser sempre estranho àquilo que se ama.”.