Sempre que uma grande obra da literatura é adaptada para o cinema, surge a discussão calorosa sobre como fazer esse transporte de plataformas artísticas – do livro ao filme – de forma ideal, mantendo o alto nível da experiência de quem com ela terá contato. Recentemente, filmes como Na Estrada (2012) e O Grande Gatsby (2013) serviram de combustível para essa fogueira ideológica. Literalmente se queimaram diante de seus objetivos. Infelizmente não foi diferente com A Espuma dos Dias (2013), do diretor Michel Gondry.
Aparentemente é consenso que o primeiro passo para a adaptação de uma obra literária seja o pleno entendimento de sua significância. Para tal, é valiosa a ferramenta da análise da época na qual ela foi concebida. No caso de A Espuma dos Dias, do escritor e multiprofissional francês (engenheiro civil, trompetista, ator, cantor, dramaturgo, poeta e tradutor) Boris Vian, o contexto histórico era o pós-segunda guerra mundial. Um misto de melancolia e deslumbramento tomava conta de uma Paris sobre forte influência das cicatrizes dos conflitos e da cultura norte-americana vitoriosa. Ao som do jazz de Duke Ellington, Vian e a classe artística parisiense costumavam se reunir em bares-porões conhecidos como caves num ambiente muito favorável à troca de experiências e inspirações. Ao contrário do que ocorria com a geração beatnik dá década de 1920, as drogas pesadas não eram usadas como material essencial durante o processo criativo. E essa pequena observação é valiosa para aqueles que desconfiem dos deslumbramentos imaginativos inesperados de Boris Vian.
A trama de A Espuma dos Dias pode facilmente ser resumida como sendo a história de um homem rico, Colin, que se apaixona por Chloé. Os dois iniciam um romance que rende um casamento, e tudo é muito feliz até que descobrem que ela tem uma doença rara no pulmão. Colin estará disposto a gastar toda a sua fortuna no tratamento, e se necessário recorrer a trabalhos para suportar os altos gastos com a saúde da amada.
Se não fosse conduzida por hábeis mãos, a história seria certamente mais um clichê romântico, vazio em sentido e até mesmo piegas. Michel Gondry optou por na tela exatamente o que as palavras dizem no livro. E foi esse o seu maior erro. “A espuma dos dias” é um daqueles livros nos quais o sentido denotativo jamais deve ser considerado. As palavras são meras serviçais de grandes abstrações riquíssimas – sobre a época, sobre a vida do autor, sobre sentimentos humanos.
Boris Vian viria a morrer aos 39 anos, vítima de complicações cardíacas originadas de uma febre reumática e uma febre tifoide mal curadas, as quais o condenaram a uma vida de espera pela morte. Quando se vive esperando pela sua partida, naturalmente é buscado o prazer acima de tudo. E foi exatamente assim que Vian conduziu sua existência. O mais notável foi que o autor conseguiu traduzir sua vida, sua época e seus sentimentos num livro originalíssimo e precioso, sendo ao mesmo tempo poético e crítico. “A espuma dos dias” é a essência desse ser humano, tão perfeitamente traduzida que parece obra de Jean-Baptiste Grenouille, o assassino que transformava suas vítimas em fragrâncias no filme Perfume - A História de um Assassino (2006). Essa essência Michel Gondry não soube explorar.
“Na vida, o essencial é manter, sobre todas as coisas, julgamentos a priori. Parece, com efeito, que as massas estão erradas, e que os indivíduos sempre têm razão. É necessário ter cautela para não extrair disso regras de conduta: elas não precisam ser formuladas para que as sigamos. Existem apenas duas coisas: o amor, de todas as maneiras, com garotas bonitas, e a música de Nova Orleans ou de Duke Ellington. O resto deveria desaparecer, pois o resto é feio, e as poucas páginas de demonstração que vêm a seguir extraem toda a sua força do fato de que a história é totalmente verdadeira, pois eu a imaginei do começo ao fim. Sua realização material propriamente dita consiste, no essencial, em uma projeção da realidade, em atmosfera enviesada e aquecida, num plano de referência irregularmente ondulado e que apresenta distorção. Vemos que se trata de um procedimento perfeitamente confessável”. O prólogo do livro, transcrito integralmente acima, nos mune com os óculos necessários para encarar a obra. Uma pena que Gondry, mesmo com essas lentes, permaneceu hipermétrope.
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