Acredito que o íntimo da dor seria a melhor definição para “Höstsonaten”, no original. Bergman com seu domínio e talento para falar sobre as diversas vertentes da dor, chega a um nível muito palpável, muito próximo, logo, devastador. O amor, que em tese é incondicional, mostra-se volúvel e frágil. Inexistente.
O filme mostra a relação conturbada entre mãe (Ingrid Bergman) e filha (Liv Ullmann) na estada rápida da primeira na casa de sua filha, a pedido desta, onde sentimentos reprimidos afloram com facilidade e naturalidade, mesmo depois de bastante tempo. Eva (Liv Ullmann) agora é casada e cuida de Helena, sua irmã doente, junto com Viktor, seu marido. Ela pede para que sua mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), venha para sua casa no interior da Suécia, para passar alguns dias, pois sua mãe é uma pianista internacionalizada. É impressionante observar a naturalidade e sutiliza das atuações, pautadas por um roteiro real e enxuto.
O cinema quando descreve relações familiares é de certa forma o espelho de atitudes que talvez já vivenciamos ou no mínimo escutamos sobre, no entanto, Ingmar consegue tocar de forma brilhante em algo talvez improvável de existir. A indiferença de sentimentos entre mãe e filha, abre caminho para o rancor e o ódio que a filha sente da mãe, justamente pela falta do laço maternal que a mãe não soube desenvolver. Não pensem que a mãe retratada é austera ou dura, não, não, é apenas uma mãe que não teve vocação para ser mãe, uma mulher que achou que suas atitudes eram suficientes e corretas para com suas filhas (como por exemplo, o tratamento dado a Helena, irmã de Eva). Essa mãe é tão vítima quanto a filha, pois descobriu através de seu rebento que ela foi um fracasso como genitora, mesmo sendo primorosa como pianista. É importante observar, que o indivíduo como pessoa única e ser singular, possui suas vaidades e caprichos, inerente a sua condição ou estado. Neste caso, Ingrid Bergman sustenta de forma dúbia até o final do filme se foi relapsa ou se apenas não teve vocação para o maternal. Muitos dizem que o tempo cura. Na visão de Ingmar o sentimento que ao invés de se extinguir, apenas aumentou.
Ingrid Bergman mostra uma inexorável atuação, com total domínio de cada nuance de voz ou pronuncia de palavras. A sua personagem se apaga gradativamente ao longo do filme, morrendo a medida que a verdade lhe é apresentada. A postura de uma pianista bem sucedida some na imensidão de um papel de mulher que “não foi bem executado”, pois não possui o dom da maternidade. A essência e apuro para criar um filho, que deveria vir “embutidos” em qualquer mulher, não existe em Charlotte, assim sendo, ela amarga e perece ter conhecimento disso tarde demais. O filme foi seu último para o cinema e em sua língua natal, unindo dois ícones da Suécia jamais vistos. Dois mitos, sem dúvida. Liv Ullmann é de um ódio e rancor tão cruel que chega a ser nocivo. A atriz possui tanta categoria, que não cai no lugar comum e mantêm a substância da personagem intacta. Sua personagem é amarga e destrutiva, vítima de tristes circunstâncias. Ullmann sempre foi subestimada pelo cinema internacional, mesmo nos oferecendo tanta expressividade e talento. Indiscutível a cena do piano entre as duas atrizes e a versão (duelo) de Chopin de cada uma. Espantosa.
Ouso atribuir um distanciamento do público as personagens, o fato de que a cor local dos acontecimentos se passa na Suécia. Estamos acostumados com um cinema mais passional e inconsequente. Muitos sentimentos exacerbados em voga. A cultura nórdica é tão sensível quanto qualquer outra, todavia, a forma em que é mostrada indiscutivelmente é leal a realidade daquela esfera. Atento para o fato de que Eva, em determinado altura, diz tudo o que sente para mãe, mas não há lágrimas em sua face. A personagem sangra, mas não é obrigada a chorar para sabermos que a sua carga é atroz. Sutileza de Ingmar e meticulosidade de Liv.
O filme vale a pena por tudo. A trilha que vai de Shumann a Bach, carregada de muita emoção, sendo vital ao filme. A fotografia em tons de dourado de fim de tarde de Nykvist e é claro, a direção e roteiros de Ingmar e as atuações lindíssimas. Perdoem a nostalgia, mas é cinema quase não se vê mais hoje em dia.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário