Há quem veja o papel do cinema como um refúgio à realidade da vida. Para esses, a solução é injetar falsas fantasias e ilusões românticas ou produzir comédias que subestimam a inteligência dos espectadores. Em outros casos, mundos imaginários e personagens superpoderosos acabam sendo saídas menos arriscadas e a comparação com a realidade torna-se um componente menor.
O problema desse tipo de cinema é que ele produz uma falsa ideia da vida, produzindo um conteúdo ideal, uma norma a ser seguida para os que desejam a felicidade. As pessoas caem nesse embuste e quando comparam suas próprias vidas aos enredos transbordantes e arrebatadores, são atingidos por um óbvio mal-estar.
O cinema dos irmãos belgas, Jean Luc Dardenne e Pierre Dardenne, existe para mostrar que a vida não é um “arco-íris que nasce da manjedoura de um pônei de cor-de-rosa e termina com duendes dançando e cantando” (thanks, Porta dos Fundos). E isso é ainda mais verdadeiro quando a câmera na mão entra em cena para filmar uma Europa que não se adaptou à exclusão social pós-Welfare State, onde as pessoas precisam competir numa disputa desumana por dinheiro, emprego e convivem com transtornos sociais antes reconhecidamente reservados aos países subdesenvolvidos.
Em A Criança (L'Enfant, 2005), somos envolvidos na história através dos olhos de Bruno (Jérémier Renier), cuja namorada acaba dar luz a uma criança. Enquanto ela está totalmente envolvida com o filho, Bruno assume mecanicamente o papel de pai, executando o que deve se esperar da sua condição.
Tudo no filme gira em torno de dinheiro. Antes dos primeiros 10 minutos, o protagonista começa repartindo os valores de um roubo de 1.300 euros. Tudo é monetizado e está disponível para negociação. Um diskman, produto do roubo, é negociado. 20 euros. Um presente para a irmã de um dos dois moleques envolvidos nas ilegalidades para as quais se unem.
Em outra cena, a jovem mãe, Sonia (Déborah François), fala sobre um possível emprego de 1.000 euros por mês que fora oferecido a Bruno. “Não trabalho para cuzões”, responde ele, que, diferentemente da namorada, cujo filho alterou sua percepção sobre o mundo, continua o mesmo, o que produzirá graves repercussões na relação.
Quanto vale um filho recém-nascido? Bruno é tentado por uma proposta de 5.000 euros e, numa oportunidade em que está a sós com o bebê, faz uma transação como se tratasse de mais um objeto e não de uma criança. Essa desumanização é muito perceptível quando ele conta à namorada, que entra em estado de choque, seu mais novo negócio. “O que foi que eu te fiz? Pensei que poderíamos fazer outro”, é a melhor justificativa que ele encontra para se explicar.
A partir daí, o protagonista, cuja história já começa em condições muito adversas, desce rolando a ladeira da vida, provocando uma situação de angústia, através da qual o espectador começa a se comparar e questionar de que talvez a vida não seja tão ruim assim quanto pensa.
O cinema dos irmãos belgas é caracterizado por um realismo profundo, mediado por uma narrativa seca da realidade. Em A Criança, a fotografia cinzenta é manejada com destreza para reforçar a atmosfera de desamparo que percorre a obra. Diferentemente do que ocorre produções anteriores (Rosetta, 1999 e A Promessa, 1996), o enquadramento é mais aberto, mostrando um cenário de carros e prédios que contribuem para aprofundar o contraste sobre o protagonista. O resultado é sensacional.
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