Realizar um filme à partir de uma canção não é tarefa fácil, muito menos quando se trata de uma das canções mais conhecidas do grande público. Portanto, o caminho obviamente não seria fácil para Faroeste Caboclo (baseado na canção homônima de Renato Russo). Se tal responsabilidade é grande e assustadora, a música ajuda. Ao contrário de outras músicas que deram origem à filmes¹, Faroeste Caboclo é uma canção de uma narrativa clara, quase que uma história cantada.
Ao mesmo passo que narrativa, a canção é grande. A versão mais conhecida, interpretada pela banda Legião Urbana, possui mais de nove minutos. Mais de nove minutos de verborragia constante que resumem toda a vida de um homem. Como transpor tanto para o filme? Fazendo-o durar quatro horas causando bocejos, mas satisfazendo seus fãs? - Para a nossa alegria, não é o que acontece. O grande trunfo do filme reside justamente nesse ponto: a forma como a narrativa é estruturada à partir da música que lhe deu origem.
Faroeste Caboclo opta por manter os principais personagens da canção e os principais acontecimentos que nela ocorre, mas não faz uma tradução literal de todos os fatos. Se às vezes cai na infelicidade de sentimentalizar seus personagens em excesso (e de certa maneira redimi-los), é feliz ao saber transpor muitas das questões da música (como o racismo, a violência, a desigualdade social etc) para sequências concisas. Assim, o filme produz aquela sensação de que não existem barrigas ou momentos vãos, que nem a história e nem a "mensagem" são deixadas de lado em nenhuma sequência. Como nos mais adorados clássicos narrativos norte-americanos, temos a impressão de ver um filme devidamente redondo.
Mas como não poderia deixar de ser, nem tudo são flores. Existe uma locução em off completamente desnecessária, que só não é pior porque se furta a descrever o que está sendo mostrado na tela. Não que um filme viva calcado no que é necessário ou não, mas para um filme que se pretende redondo... Mesmo que contado de forma fragmentária, o cinema do subentendimento reina, seja através de gestos ou pistas. Aqui é novamente eficiente, respeitando a compreensão do espectador com uma dignidade rara em filmes recentes realizados para grandes plateias. O filme não se afasta de moralismos, o maniqueísmo maconha/cocaína é um exemplo, mas ainda assim... Em pleno século XXI, não é todo dia que vemos em grandes produções casais interétnicos, mocinhas que fumam maconha, heróis viris que são estuprados.
O filme se constrói visualmente como uma música, ritmado por uma montagem às vezes abrupta, mas orgânica. A música é, inclusive, uma das poucas formas possíveis que vejo para que se olhe a construção visual do filme sem que ela pareça demasiado vazia. Os planos são "bonitos", bem compostos, com usos de sombras e silhuetas que potencializam a atmosfera sombria do filme, mas ainda assim soam como algo esvaziado de sentido. Uma certa procura excessiva pelo belo, ao mesmo tempo em que não se deixa olhar muito tempo para ele (os planos tendem à serem curtos, exceto em alguns momentos). Fotografia e arte aqui parecem saídas de uma campanha publicitária - o que veja bem, não é defeito algum. Falar de defeitos nem sequer caberia à mim, não é essa a questão e nem o motivo deste texto.
Como dito no parágrafo anterior, os planos costumam ser "belos" e seria indelicado deixar de notar o cuidado com que o filme parece ter à cada parte sua. Observa-se novamente aqui uma forma respeitosa de lidar com o espectador. O mesmo talvez não se possa dizer quanto ao uso do som - mais especificamente os ruídos. Ironicamente, é no uso desses que o filme mais peca. Uso o verbo pecar porque com isso prejudica à si mesmo. Os ruídos andam no caminho do grande espetáculos, com grandes pontos de tensão aos quais já estamos não só acostumados - como cansados. Em verdade, tal uso dos ruídos auxilia na imersão do universo fílmico. Entretanto,soa como um recurso fácil demais. Não menos cuidado, mas menos pensado e ousado que os outros recursos da linguagem cinematográfica utilizados no filme.
Voltando à questões imagéticas, devem ser apontados certos aspectos do filme que o tornam menos coeso, para que não se caia na armadilha de fazê-lo um retrato que não lhe pertence. Existem três sequências que produzem no espectador aquela boa e velha sensação de: WTF? Na primeira, vemos uma inserção documental que contextualiza a Brasília ao qual Santo Cristo chega. O realizador pode ter um gosto interessante (tem cenas de um Vladimir Carvalho no meio), mas o descolamento do resto é gritante. Na segunda, vemos um delírio de Santo Cristo quando preso. No delírio, Maria Lucia e Jeremias em uma cena sexual tosca - com direito à filtro instagram e tudo. Na terceira sequência, essa mais dolorosa que as outras, encontramo-nos no final do filme e vemos o que parece ser um fluxo mental de Santo Cristo com uma narração em off que trás a tona bobamente a tal "mensagem" que mencionei no terceiro parágrafo.
O contra campo para o parágrafo anterior se condensa na cena do duelo entre Santo Cristo e Jeremias. Honrando o título que lhe cabe, Faroeste Caboclo brinca com a linguagem mítica do western de forma à introduzir códigos de linguagem cheios de referências, mas sem cair na citação excessiva. Assim, em uma só sequência a narrativa cumpre o seu caminhar emocional e factual, assume seu caráter espetaculoso e ao mesmo tempo generoso, e encerraria o filme com louvor - não fosse à já citada visão de Santo Cristo.
Falemos então de um ponto essencial para o bom sucedimento de Faroeste Caboclo: o casal protagonista. Isis Valverde (Maria Lucia) e Fabricio Boliveira (João de Santo Cristo) podem não ser os melhores atores do mundo, mas conduzem seus personagens com simplicidade e carisma, de forma a humanizá-los. Assim, a partir dos dois, foge-se de certos moralismos que poderiam recair sobre seus caracteres. Para alguns, servem como mecanismo de identificação, para outros, como forma de ver na tela algo que dá força as imagens e tornam-nas menos banais.
Ao final, o que fica é um entretenimento daqueles, que ao mesmo tempo é muito mais do que isso. É bom ver que ainda é possível existirem filmes que entretenham seus espectadores sem judiarem deles. Em verdade, não tinha a mínima curiosidade em ver o filme, só vi porque entrei na sessão errada (ia ver Sorelle Mai, de Marco Bellocchio). Ai ai, como é bom descobrir que estava enganado...
¹ Aqui me refiro à adaptação da canção Olhos nos Olhos (Chico Buarque) por Karim Aïnouz em O Abismo Prateado (2011).
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