‘’A luz que brilha o dobro arde a metade do tempo’’
A aclamada obra de ficção-científica ‘’Blade Runner – O caçador de Androides’’ é o terceiro filme do diretor Ridley Scott, responsável, também, por outro renomado sucesso do gênero, Alien – O Oitavo Passageiro, de 1979. Considerado hoje um filme cult, a marcante obra distópica de Scott descreve, basicamente, um obscuro futuro onde os seus personagens realizam a busca, intensamente e a todo momento, pela sua identidade perdida. Por conseguinte, Blade Runner é uma mini-odisseia de humanos e androides, em busca deste algo perdido: por parte dos humanos, a identidade própria, sentida, paulatinamente, com a evolução cronológica do filme, e por parte dos androides, a busca pela longevidade da vida e a fuga da morte inevitável.
O filme, de 1986, retrata um futuro próximo (2019) em que a humanidade vivencia uma nova era, a época da colonização espacial. Para lhe auxiliar neste processo de colonização, o ser humano, bastante evoluído mentalmente, criou seres geneticamente alterados, os chamados replicantes (ou androides), para realizar trabalhos forçados em outros planetas. A empresa Tyrell Corporation é a líder neste impensável (hoje, é claro) mercado de engenharia genética, tendo como resultado de sua supremacia a fabricação dos modelos de replicantes Nexus-6, considerados ‘’mais humanos que os humanos’’ (eles são idênticos aos seres humanos) e mais fortes e ágeis, consistindo, portanto, no modelo mais adequado ao trabalho duro. A única diferença dos replicantes Nexus-6 para os seres humanos é que aqueles não podem sentir, a curto prazo, as mesmas emoções humanas; apenas seria possível após um grande convivência com o ser humano. Deste modo, os Nexus-6 foram programados e limitados a viver apenas quatro anos, evitando, dessarte, possíveis problemas futuros à sociedade. Acontece que devido a isto, os replicantes sofrem de uma instabilidade emocional e de um problemático desenvolvimento agressivo de sua personalidade.
Diante da inevitável morte precoce (Scott estaria aqui fazendo um estudo dos próprios seres humanos e da morte?), um grupo de replicantes Nexus 6 realizam um motim sangrento e violento em uma colônia espacial e são, por conseguinte, considerados ilegais na Terra sob a pena de morte. São criados os blade runners – os caçadores de androides – uma certa polícia especial que recebe ordens para exterminar todo e qualquer tipo de replicante. Cumpre ressaltar aqui um fato, no mínimo, curioso: o extermínio não era chamado de ‘’morte’’ e, sim, “aposentadoria’’ dos androides, pois eles, aos olhos dos seres humanos, não possuíam vida, consistindo apenas em uma mera invenção da engenharia genética.
A obra de Scott acompanha a trajetória de um blade runner, Deckard - interpretado de forma tímida por Harrison Ford – que recebe a missão de ‘’aposentar’’ o grupo de replicantes que se rebelou e veio a Terra para procurar seu criador e, assim, aumentar o seu breve período de vida, escapando da temida e assombrosa morte inevitável. Ao ser convocado por Tyrell, o criador dos androides, Deck conhece sua jovem assistente replicante, conhecida por Rachael, que ignora o fato de, também, ser uma replicante, pois possui todas as memórias de uma sobrinha de Tyrell, e, apoiada neste fato, não consegue convencer-se de que, também, é apenas uma mera replicante. Um detalhe levantado genialmente pelo diretor é que, a medida que os replicantes são caçados por Deckard, eles parecem adquirir, cada vez mais, características e comportamentos humanos, ao passo que, os humanos que caçam os androides, paulatinamente, passam a possuir características típicas de replicantes. Curioso, não? Por derradeiro, as questões que atormentam os androides acabam se tornando as mesmas que afligem os seres humanos. Ridley Scott, em Blade Runner, nada mais fez do que um verdadeiro estudo existencial do comportamento humano e do milenar medo da morte inevitável. Seria a vida, destarte, um mito de sisífo? Albert Camus sorri em seu túmulo.
A cena da morte do ‘’Deus dos androides’’, Tyrell, é magistral e marcante, remetendo, como se tem por evidente, a 2001: Uma Odisseia no Espaço (parece que este filme inspira todos, não é?). É quase uma morte metafísica: o criador sendo exterminado pela sua própria criatura. Assim como HAL 1900 sendo desligado por Dave em 2001.
Scott retrata um futuro pessimista e opressivo em Blade Runner ao mesclar o gênero noir com a ficção científica na Los Angeles de 2019. Com um cenário escuro e sombrio, acompanhada de uma chuva ácida persistente, o cineasta nunca nos mostra a cidade durante o dia, sempre a exibindo com paisagens noturnas e marcantes sob cintilantes luzes em néon. Paralelamente à esta visão obscura de Los Angeles, o diretor concebe uma cidade cosmopolita (uma verdadeira salada cultural quando assistimos o logo da Coca Cola nos anúncios e, logo após, um enigmático rosto oriental) completamente dominada pela cultura oriental. Tal visão multiétnica é perfeitamente adequada aos dias de hoje, quando percebemos o crescente domínio da China sobre os países do Ocidente. Com efeito, Ridley Scott em Blade Runner, criou uma verdadeira obra distópica, com um visual marcante, podendo ser comparada à obras literárias como 1984 de George Orwell e Admirável-Mundo Novo de Aldous Huxley, além, é claro, do clássico filme de 1928, Metropolis (talvez a maior inspiração do filme), de Fritz Lang. Tal retrato distópico futurista concebido por Scott dificilmente irá envelhecer, consistindo numa daquelas obras que resistem ao tempo e marcam a história do Cinema.
Aliás, quando o filme foi lançado em 1982, a obra não teve uma aceitação muita boa por parte da crítica especializada. A película teve impasses com os produtores que obrigaram o diretor a alterar a edição do filme e incluir uma narração final que explicasse melhor o complexo enredo, considerado muito complicado para a grande massa telespectadora. Um verdadeiro absurdo por parte da produção do filme. Foi somente anos mais tarde que Ridley Scott lançaria o filme com sua versão idealizada – a chamada versão do diretor – com novos cortes, especialmente a narração final incluída na primeira edição de 1982.
A identidade perdida ao longo do filme pelos personagens encontra destaque principal no protagonista, Deckard. Assim como a replicante Rachael sofre uma crise de identidade ao saber que não é humana (e sim uma androide), ao final do filme surge uma grande dúvida na cabeça de quem está assistindo a película: será que Deckard seria, também, um replicante? No fim de tudo, devido à confusão de identidade que acometem todos os personagens da trama e à grande semelhança existente entre replicantes e humanos, já não há como realizar distinção entre androides e seres humanos. Incrível.
Deste modo, Blade Runner – O caçador de androides, sem sombra de dúvidas, é um filme marcante para a história do cinema e um dos mais importantes para o gênero da ficção científica. Através de geniais influências, já mencionadas, Ridley Scott utiliza a sétima arte para realizar uma reflexão filosófica sobre a questão da identidade dos homens e, também, salientar a respeito da inteligência humana como a sua própria armadilha, retrato parecido com o concebido por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço, no clássico e magistral conflito entre invenção humana e o homem. Efetivamente sublime.
Esta e outras resenhas podem ser encontradas no: http://this-is-cult-fiction.blogspot.com/
Filme lindo de ponta a ponta.