O drama de um ex-açougueiro lutando para sobreviver nas entranhas do seu país
Sozinho Contra Todos é um filme de 1998 do polêmico diretor franco-argentino Gaspar Noé, conhecido pela sua angustiante obra, que retrata a vida através de uma ótica pessimista e hostil, permeada com uma crueza chocante. A visão de mundo de Gaspar Noé é fortemente realista e impactante, levando as pessoas que assistem aos seus filmes ao limite. Aviso desde já, por conseguinte, que se você não tem estômago para este tipo de coisa, tal filme não é recomendado para você. A obra aborda assuntos como incesto, violência doméstica, aborto, sexo, suicídio e solidão, ou seja, definitivamente, não é um filme para se ver acompanhado da namorada ou da família. Agora se você consegue digerir um filme que retrata o verdadeiro Absurdo de Camus ou a Náusea de Jean-Paul Sartre sem se abalar ou se angustiar, prepare-se para um grandioso filme (um dos meus preferidos) que debate questões existencialistas e pertinentes à nossa realidade social. Estas questões estão aí diante de nós, a todo momento, e querer ignorar a realidade cruel que o filme descreve, é simplesmente ignorar o que, de fato, acontece na vida real.
O longa, pouco conhecido pela grande maioria das pessoas, cria uma verdadeira atmosfera hermética, no qual o personagem da trama, conhecido apenas como Açougueiro – já que não temos acesso ao seu verdadeiro nome – retrata a sua sobrevivência (o nosso personagem apenas sobrevive, viver não seria o verbo mais adequado para descrever o seu estilo de vida) nos subúrbios de Paris, retratada de uma forma cruel e chocante. Tal retrato imundo e perverso de Paris não lembra em nada a conhecida face romântica da cidade-luz comumente retratada no Cinema com tons avermelhados e apaixonados. A fantástica fotografia em tons amarelados dá o toque para a crescente loucura e solidão do Açougueiro. O roteiro do filme é abordado como se o filme fosse um diário insano do personagem interpretado de forma sublime pelo ator Philippe Nahon. A Náusea de Jean-Paul Sartre é evidenciada como nunca nesta película, com uma forte abordagem existencialista, onde percebemos, a todo instante, a forte influência do clássico realista de Martin Scorsese, Taxi Driver, especialmente na cena em que nosso anti-herói leva a arma à cabeça, como se fosse realizar um suicídio.
O Açougueiro, um indivíduo misantropo, no início da trama mata um indivíduo desconfiado de que ele tinha estuprado sua filha. Preso, passa quinze anos de sua vida apodrecendo no cárcere. Ao sair da prisão, nosso protagonista descobre-se só no mundo, sem absolutamente ninguém e sem sua própria filha. Casa-se com uma rica mulher que promete financiar um açougue para o nosso anti-herói. Descontrolado e impaciente com a enrolação da mulher em pagar-lhe o açougue, o Açougueiro chuta o pau da barraca e dá uma verdadeira surra (e que surra meus amigos) na coitada, abandonando-a. De volta a Paris, o filme exibe a verdadeira natureza do protagonista que luta para sobreviver em meio a tanta escória e podridão (meus caros, isso lembra algum filme?). Como o filme anuncia em seu prelúdio: a película narra ”o drama de um ex-açougueiro lutando para sobreviver nas entranhas do seu país”. O Açougueiro, sofrendo de uma demência crescente, luta para sobreviver, ao longo dos dias, num mundo putrefato onde todos estão sozinhos contra todos.
A partir deste panorama, Gaspar Noé descreve - sempre com muita maestria - o Açougueiro de uma forma incrivelmente pessimista, levando o expectador a aceitar os fatos sem contesta-los. No decorrer do filme, o protagonista solta uma série de geniais frases contra a sociedade que levam o expectador a até adquirir uma certa empatia com o personagem. No final de tudo, apesar do seu aspecto petrificado e doentio, quem assiste o filme até chega a torcer por uma reviravolta na vida do personagem, mas desconfia, que isto dificilmente pode ocorrer.
A direção de Gaspar Noé é impecável: emprega-se uma câmera sempre estática, separando os atores com o cenário em seus enquadramentos. Além disso, usa-se, por diversas vezes durante o filme, um efeito técnico parecido com um ‘’chicote’’ da câmera para melhor andamento do filme. Sem dúvidas, Sozinho Contra Todos consiste na obra-prima de Noé superando, com grande vantagem, seu outro ótimo longa-metragem, o perturbador Irreversível de 2002.
Apesar de ser um filme intenso e repulsivo em vários momentos, Sozinho Contra Todos é uma obra-de-arte de grande valor, onde o seu diretor discute questões existencialistas e os limites dos sentimentos do ser humano, abordando assuntos desde a degradação psicológica do personagem até temas mais polêmicos como o incesto. O mais chocante de tudo é que o filme aborda um tema espantosamente próximo de nossa realidade. O Açougueiro pode ser qualquer pessoa próxima a você, ou, ainda, o Açougueiro pode ser... você.
Esta e outras resenhas podem ser encontradas no: http://this-is-cult-fiction.blogspot.com/
Ótima crítica meu caro. Filme muito foda mesmo.