"A Baleia", um filme otimista, só que não!
Contém detalhes importantes do enredo, os famosos "spoilers".
"A Baleia", filme de Darren Aronofsky, vai ser lembrado principalmente pela grande atuação de Brendan Fraser no papel principal de Charlie.
O Diretor tem uma carreira polêmica que divide opiniões de crítica e público. Muitas vezes criticado por excesso de simbolismos e subtexto, Aronofsky parece ter seguido um caminho mais seguro em "A Baleia".
Partindo da peça teatral de mesmo nome, tendo sido adaptada pelo próprio escritor, Samuel D. Hunter, o filme recebeu algumas críticas por ter narrativa repetitiva, mas que se mostra crucial para o filme.
Sobre as características da filmagem e edição, a escolha do formato 4:3 propositadamente para apertar os personagens e deixar Charlie ocupando todo espaço da tela foi bastante acertada e cumpriu o objetivo.
Outra característica interessante é o fato do personagem estar sempre em uma posição central, com relação aos demais personagens girando ao seu redor, como se orbitassem uma grande massa. Essa particularidade fica clara quando o personagem Charlie a tenta, com muita dificuldade, olhar o que ronda às suas costas em diversos momentos do filme.¹
A densidade do personagem principal é plena, obrigando o espectador a ter o próprio ponto de vista de Charlie em diversos momentos vista a sua dificuldade de locomoção. Os que até chegam a casa passam por uma varanda, sendo quase sempre dada a perspectiva em primeira pessoa de Charlie.²
Exceto pela cena inicial, mostrando ao longe alguém descendo de ônibus, que após descobrimos ser o personagem Thomas (Ty Simpkins) fugindo de sua cidade Natal por furtar pouco mais de dois mil dólares da igreja, o restante das ações do filme se passam na casa de Charlie.
A casa de Charlie fica no alto e só pode ser acessada por escadas, fazendo crer que o personagem principal não sai de casa há tempos.
Ao longo do filme todos os personagens terão seus pecados revelados. Em regra, um para cada personagem. Charlie abandonou a filha aos oito anos para viver um caso de amor. Ellie (Sadie Sink), filha de Charlie é uma adolescente no auge da rebeldia. Liz (Hong Chau) também confessou seus momentos de rebeldia do passado. Mary, (Samantha Morton), ex-esposa de Charlie se culpa por ser uma péssima mãe. Thomas, o referido furto da igreja.
No início fica a sensação de que a relação entre os personagens é drástica, muito pior do que do vai se revelando no decorrer do longa.
A medida que Charlie vai se arrastando para sua morte sob os cuidados paliativos de Liz um otimismo crescente permeia o filme e aos poucos os personagens vão tendo seus pecados revelados e redimidos.
No entanto, o otimismo parece se limitar ao que ocorre dentro da casa, funcionando como purgatório para os personagens, ou ao menos para o personagem principal ser elevado aos céus com uma espécie de "perdão" de sua filha, podendo-se, nesse ponto, questionar o otimismo do filme com a existência de um possível subtexto.
Apenas para frisar, a temática sobre Deus e religião aparece mais uma vez de forma resoluta na obra do Diretor.
Voltando ao possível subtexto, considerando que a perspectiva do personagem em primeira pessoa é dada ao espectador em diversos momentos, como exposto acima, "levanta-se a lebre": seria o otimismo crescente apenas fruto da condição do personagem Charlie?
Todas às vezes que a personagem Liz entra em cena ela pergunta como Charlie está. Liz faz questão de perguntar se Charlie não se sente desorientado, confuso ou tonto. Sintomas que decorreriam da condição do personagem. A resposta, da perspectiva de Charlie, é não.
Contudo, seria o otimismo que permeia o filme apenas a perspectiva do personagem principal, já em estado de confusão mental dentro de sua casa, enquanto a crueldade mundo real está do lado de fora da casa?
Alguns elementos do filme respondem positivamente esses dois questionamentos, tornando essa leitura possível, os quais destaca-se:
Quase no finalzinho do filme, no último diálogo no sofá entre Liz e Charlie, Charlie divaga sobre sua filha ser uma boa pessoa, posição otimista. A divagação, embora fique clara ao espectador, resta confusa para a personagem Liz, sendo ela obrigada a perguntar Charlie do que se trata sua divagação. Eis que os espectadores estão sob perspectiva de Charlie, Liz não.
São apenas três os acontecimentos mostrados do lado externo da casa, que vão se mostrar momentos impiedosos da trama como o personagem principal.
Sem dúvidas o mais intrigante deles é o do prato com um farol e pequenas baleias desenhados, colocado por Charlie do lado de fora da janela com maçãs para a alimentação de pássaros, ficando evidente a preocupação de Charlie com todos, exceto si mesmo e inclusive com os pássaros.
Ocorre que no último terço do filme Charlie, tentando saber o que aconteceu, vê o prato quebrado pela janela.
A interpretação mais plausível para o prato estar espatifado é a de que sua filha o quebrou enquanto dormia sob o efeito de sonífero, dado veladamente pela própria Ellie.
A única vez que o prato aparece em cena entre ser colocado e aparecer quebrado é a cena em que Ellie está preparado um sanduíche para seu pai, o mesmo em que ela coloca o sonífero.
Ellie percebe a afeição de seu pai ao ver um pássaro comendo os pedaços de maçãs. Logo a cena é cortada e mostra Ellie com uma faca, cortando o balcão da cozinha. Pode parecer um corte aleatório, mas a faca cortando o balcão tem é um indicativo de que a personagem estava fazendo algo menos nobre. Quebrando o prato para incomodar seu pai, assim como diversos outros incômodos que perpetua a outras pessoas ao longo do filme.
Aronofsky criou uma elipse cinematográfica para deixar subentendida a atitude de Ellie, praticada do lado externo da janela, recurso bastante utilizado pelo diretor em seus filmes. O ato de Ellie é bastante pungente, não só para com o pai, como para os pobres pássaros também, revelando justamente a postura contrária a de seu pai, a de não se preocupar com ninguém.
Outra cena que ocorre do lado externo da casa é a do entregador de pizza Dan (Sathya Sridharan).
Diversas pizzas são entregues para Charlie no decorrer da história. Charlie, recluso que é, sempre pede para o entregador pegar dinheiro da caixa de correio e deixar as pizzas no banco. Na segunda entrega, o entregador tenta interagir com Charlie, revelando seu nome e perguntando se está tudo bem dentro da casa, demonstrando empatia. Cabe ressaltar que especificamente nessas entregas a câmera está na perspectiva do personagem em primeira pessoa ao mostrar a sombra do entregador passando pela janela.
Na terceira entrega, após Charlie ver a sombra do entregador saindo, ele resolve abrir a porta e pegar as pizzas, quando é surpreendido pelo entregador parado do início da descida da escada.
A empatia demonstrada pelo entregador se limitou enquanto Charlie estava escondido dentro do imóvel. O entregador ao ver Charlie simplesmente faz uma cara de desgosto e parte em retirada, como quem pensa: "ele é apenas um gordo mórbido idiota".
Essas duas sequencias demonstradas, a do prato e do entregador de pizza, são praticamente inúteis para o filme sem alguma leitura alternativa, como a aqui pretendida ao tentar demonstrar que a positividade do filme está limitada a Charlie e o que acontece dentro de sua casa.
A outra cena na parte externa da casa, filmada a pouca luz, granulando propositadamente a imagem, é a "conversinha" entre Liz e Thomas. Nela, Liz tenta convencer Thomas de que seguir cegamente os preceitos de uma religião pode ser algo nocivo, expondo o drama de sua família e irmão.
A granulação de uma imagem é um recurso estilístico geralmente utilizado para criar uma atmosfera mais tensa, suja ou opressiva, aumentando a sensação de realismo ou de urgência.
Não conseguindo ser levada a sério, Liz termina a cena esbravejando com Thomas, falando o que estava sendo evitado ser dito dentro da casa para Charlie, a realidade nua: que ele estará morto em alguns dias.
No mais, o único outro elemento identificado como externo são as frases enviadas pelos alunos de Charlie em sua despedida como professor de escrita, diante do pedido de sinceridade, as frases lidas também não são nada motivadoras, para não dizer um pouco perturbadoras.
Já no desfecho, o argumento do roteiro é concluído pela redação sobre "Moby Dick" escrita por Ellie, utilizada por Charlie como motivação para se manter vivo a todo tempo, sendo um dos motivos para a crítica caracterizar o filme como repetitivo.
Ellie, agora ela incomodada com os elogios derradeiros de seu pai, tenta sair pela porta, mas é praticamente segurada por uma luz quase divina, sem por um pé para fora, cumpre assim o último desejo de seu pai, o perdão, a leitura da redenção, agora e na hora de nossa morte, amém.
Cássia (MG), 11 de março de 2023.
Vicente Vegano
REFERÊNCIAS
1. Créditos da observação para Lucas Salerno Miguel.
2. Créditos da observação para Yuri Bortolato Raimundo.
Texto muito bom