Ainda que exista uma boa quantidade de imagens com valor capital para a trama de Cria Corvos, dentre todas elas, a que melhor sintetiza o décimo segundo longa-metragem do prolífico cineasta espanhol Carlos Saura, é a que se segue após os créditos inicias: um lento caminhar da câmera que olha quase inocente as fotografias de família da pequena Ana.
O poder de síntese desses segundos inicias reside na materialidade e na organização das fotos no quadro que as ostenta: todas elas dispostas de forma aleatória, umas coloridas, outras preto e brancas, mas todas amareladas, entregues aos desmandos da natureza do tempo que eternizaram, que não se fundem apenas por conta das barreiras de sua própria existência, com notas de rodapé à mostra, comentam sobre locais no espaço-tempo e fazem coexistir passado e presente.
E é justo que ele se utilize destes planos logo de cara, já que eles denotam certo sentido as imagens que se seguem – estes primeiros recortes sobre recortes são localidades visitáveis que guardam as chaves para a compreensão dos traumas desta já não tão pequena Ana; um rio de fluidez diversa, alheio aos comportamentos de natureza ordinária que lhe poderiam ser impelidos.
Subvertida a ordem natural das coisas, apresentadas as locações e criado um duplo, Saura, já na sequência seguinte, apenas posiciona aquele olhar quase inocente de sua câmera (uma criança: Ana) diante daquilo que amedronta todos nós: a vitória do tempo. A pequena Ana apenas ouve a morte do pai, enquanto assiste a fuga daquela que presenciara o fato: a sua amante.
O que se apresenta para nós daqui pra frente é um exercício insano e primoroso sobre um dos fatores que determinam o fascínio gerado pelo cinema: a sua capacidade de subtração do poder do tempo.
Na cena em que a pequena Ana vai até a cozinha pegar folhas de alface para dar de comer ao seu hamster, Saura materializa através de suas atrizes principais três épocas diferentes do tempo num mesmo quadro: a Ana jovem, interpretada por Ana Torrent, que, num misto de alucinação e lembrança, dialoga com Geraldine Chaplin, interprete de sua falecida mãe, mas também interprete da própria Ana na vida adulta.
O tempo do filme, então, está todo alterado. Mas não como, por exemplo, num Pulp Fiction, de Tarantino. Saura ataca o tempo em sua gênese (dentro dos planos) e não na sua superfície (montagem), como o faz Tarantino.
Mesmo que o diretor a essa altura já tenha o tempo do filme em suas mãos, ele ainda segue o seu esquema inicial: mantém a versão adulta de Ana no subterrâneo do quadro, isso quando não monta seu filme de maneira a deixa-la sempre como comentarista de certas imagens, inserindo-a de cara aberta, de frente pra câmera, em imagens quase jornalísticas, entre uma lembrança e outra – as notas de rodapé das fotos no quadro no início do filme; e faz com que a jovem Ana seja o olhar que passeia por essas imagens antigas.
Ainda assim, mesmo que fiquem marcados em nossa mente a feição quase sempre plácida de Torrent diante da morte e os personagens de Chaplin que ora são fantasmas, ora são comentaristas do passado, é a capacidade que Carlos Saura tem de fundir as imagens do álbum de família que qualifica este exercício como algo essencialmente cinematográfico. 24 verdades por segundo, e isso basta!
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