“Mais estranho que a ficção” conta a história de um sujeito que tem uma vida um tanto, como dizer, regrada. Como comenta a narradora - que é, como se descobre depois, mais do que uma narradora - no início do filme, Harold Crick - o personagem principal que mais mereceu essa denominação na história do cinema - guiado por seu relógio de pulso, levanta todos os dias no mesmo horário, se arruma exatamente da mesma maneira, quase perde o mesmo ônibus todos os dias: sua vida é absurdamente maçante. Maçante demais para ser, por exemplo, narrada em uma história.
Mas, paradoxalmente, descobre-se que sua vida é sim uma narração. E o mais estranho é que quem faz essa descoberta é o próprio Harold, quando ouve sua narradora, Karen Eiffel, narrando suas 72 escovadas diárias em cada um dos seus 32 dentes. A princípio, Harold se incomoda com a narração, acha que está ficando maluco.
A narração o incomoda tanto que o leva a uma situação desagradável com uma das contribuintes que caiu na malha fina. Enquanto auditorava Ana Pascal, acaba envolvido com o que narrava Karen e se vê numa situação de constrangimento moral, muito atípica para um auditor correto e regrado como ele. Entretanto, Harold se acostuma com a voz, e não se incomoda mais com ela, até que, em um momento num ponto de ônibus, ouve a narração de que o ajuste de seu relógio de pulso seria causa de sua morte iminente.
Conturbado com o fato de fazer parte de uma história da qual não sairá vivo, Harold vai em busca de ajuda com o Professor Jules Hilbert, especialista em literatura de uma renomada Universidade. Suas conversas são basicamente em torno da história na qual Harold está envolvido, seu enredo e seus possíveis finais, sobre o que não chegam a muitas conclusões. Entretanto, essas conversas acabam, ironicamente, mudando, mais uma vez, seu destino, já que, consciente de sua morte, o auditor resolve fazer tudo o que não fez em uma vida – viver.
Passa a não levantar todos os dias no mesmo horário, não se arruma mais da mesma maneira, não cronometra mais todas suas ações nem se preocupa em quantas vezes escova cada um dos seus dentes. Realiza um sonho antigo, de aprender a tocar guitarra, e, inclusive, se envolve amorosamente com Ana, o que, no começo da trama, era absolutamente impensável.
A segunda mudança no destino da protagonista ocorre porque, durante uma de suas conversas com Hilbert, Harold vê pela primeira vez sua criadora-assassina em uma entrevista na TV, e, informado por Hilbert que a autora sempre “mata” seus protagonistas, resolve ir atrás dela a fim de convencê-la a não mata-lo, pois, pela primeira vez na vida está, de fato, vivendo. Contando com seu posto dentro da Receita Federal, descobre o telefone de Karen, e a procura.
Em paralelo a esta história toda, vale destacar que a autora da história de Harold vive, desde o início, uma crise, sem saber de que maneira terminará a história. Mesmo com a ajuda de uma assistente, Penny Escher, acaba encontrando a solução quando menos esperava, enquanto comprava cigarros em uma banca. Logo após isto, ela se põe a escrever, até que é interrompida por aquilo que é o ponto de encontro entre as duas histórias, e que ela mesma está, teoricamente, criando: Harold, seu personagem, liga para ela, e “em tempo real”.
Ele, então, aparece em seu escritório, e ocorre um dos pontos cruciais da história: o encontro entre os dois. Após conversas não muito produtivas, devido ao espanto geral, Harold vai embora com um esboço de seu fim nas mãos, não sem deixar antes de “enlouquecer” Karen, abismada com a perspectiva de que não só Harold Crick, que estava prestes a matar, existe, como também todos os outros heróis de suas obras anteriores pudessem ter existido. Isso a deixa absolutamente transtornada, sem condições de continuar a escrever. E a subseqüente aceitação por parte de Harold de seu destino, após lê-lo, acaba por desestabilizar de vez a história criada por Karen, que o “recompensa” com a vida.
Nesse ponto é onde entra, acredito, a temática fundamental do filme, ou seja, a da valorização dos pequenos gestos, fundamentalmente maximizado com a brincadeira do conflito vida versus ficção, onde a autora abdica de sua obra prima em prol da salvação do homem-personagem-protagonista, situação bem explicitada no último diálogo do filme, entre o professor Hilbert e Karen.
No mais, é uma produção com roteiro de primeira linha, com várias cenas se passando na linha divisória entre comédia e tragédia: um humor-dramático (por mais conflitante que possa parecer o termo). Oposição esta que é, além de tudo, fiel à metalinguagem da obra: tanto a história como a história da história acompanham a linha de mudança tragédia brilhante – comédia água com açúcar, cronologicamente, como se ditadas por um simples relógio de pulso. De fato, mais estranho que a ficção.
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