“Imagine daqui a 10 ou 20 anos, você já casada, só que seu casamento já perdeu aquele encanto. Começa a culpar seu marido. Começa a pensar em todos os homens que conheceu e o que teria acontecido se tivesse se casado com um deles. Eu sou um deles. Veja isso como uma viagem no tempo. Do futuro ao passado. Assim você veria o que teria perdido. Seria um grande favor para você e para seu futuro marido, perceber que não perdeu nada, pois eu também sou um idiota. E você verá que fez a escolha certa e está feliz”.
Após algumas horas de bons diálogos num trem saído de Madri com destino a Paris, é com esse argumento que Jesse, americano forasteiro interpretado pelo Ethan Hawke, convence a bela e francesa Celine (Julie Delpy) a passar apenas uma noite com ele em Viena. Eles acabaram de se conhecer e vão protagonizar dois dos mais belos romances do cinema contemporâneo: Before Sunrise (1995) – que escrevo agora – e Before Sunset (2004).
Com a direção impecável de Richard Linklater, que também assina o roteiro juntamente com a Kim Krizan, Before Sunrise, primeiro filme da sequência, aproxima o espectador daquilo que é ver duas pessoas se apaixonando de verdade. Longe dos sentimentalismos baratos e da previsibilidade dos muitos romances feitos na última década, o filme surpreende não somente por não cair no lugar-comum do cinema, mas devido à sua verossimilhança, à sua visão realista do amor romântico e à sua sensibilidade ao tratar de diversos temas que encaramos nas nossas vidas, como a maneira que lidamos com as nossas lembranças, da nossa fé no mundo ou nas pessoas, ou como conduzimos nossos relacionamentos. Esse é o ponto forte de Before Sunrise: o processo de identificação espectador-personagem. E nesse aspecto, o mais surpreendente no filme é a forma simples (porém certeira) como a história é conduzida: através de longos planos-sequência, percorrendo os belos cenários da soturna Viena, Jesse e Celine vão compartilhando, no decorrer de uma única noite, as suas lembranças, impressões e opiniões a respeito da vida - e são esses diálogos, dosados de inteligência, bom humor e sensibilidade, pronunciados com naturalidade impecável pelo Hawke e pela Delpy, que dão sustentação, consistência e timing ao filme do Linklater.
Before Sunrise é um romance repleto de nuances e é isso que lhe confere tanto charme e originalidade. Como na cena em que, fazendo perguntas diretas um ao outro, Jesse – já terrivelmente encantado – quase toca os cabelos da Celine, mas, discretamente, reprime o gesto (essa cena, comprovando a harmonia entre os dois filmes, é repetida em Before Sunset, só que dessa vez, pela Celine); ou então na cena (uma das mais bonitas e intensas do filme), em que, ouvindo a belíssima canção “Come Here”, da Kath Bloom, Jesse e Celine, numa explosão de química, percebem de fato que estão conectados e, já evidenciando o nascimento de uma paixão, disfarçam olhares entre si.
Diferentemente de Before Sunset, Before Sunrise mostra a fase em que os personagens, apesar de tentarem assumir uma visão racional & madura do amor, lidam com o fato de estarem realmente apaixonados um pelo outro, expondo, explicitamente ou não - seja através de uma reação ou observação a determinada atitude - todas as suas inseguranças e [in]certezas sobre o que acreditam ou não: Se já amei, fui altruísta? Ou fiz aquilo por mim mesmo? Afinal, sou um jovem cético, ou um jovem romântico? Isso pode ser visto na cena em que um mendigo vienense pede que eles lhe ofereçam uma palavra para que ele possa fazer um poema (trecho abaixo) em troca de alguns trocados, se aquilo for “contribuir em alguma coisa” ao belo casal. A reação do Jesse depois que o mendigo recita o poema é extremamente cética (“ele deve ter adicionado a palavra a um poema que já estava pronto”), contrapondo-se à da Celine, que é extremamente passional e ficou encantada com o poema, demonstrando, de forma bastante sutil, o seu descontentamento quanto ao julgamento cético do Jesse.
“(…) Conheça os meus pensamentos / Não mais os adivinhe / Você não sabe de onde eu vim / Você não sabe para onde vamos / Estamos juntos na vida / Como dois galhos num rio / Sendo levados pela correnteza / Eu te carrego, você me carrega / Nossa vida pode ser assim / Você não me conhece / Você já não me conhece?”
Todo esse dilema do cético versus o romântico será explicitado na sequência do filme, Before Sunset, quando os personagens, já maduros, fazem um panorama “daquela noite em Viena” e sobre como eles lidaram com isso e os seus novos relacionamentos desde então. No entanto, a intensa reação de Jesse e Celine na belíssima, clássica (e cliché) cena da despedida na estação do trem põe em cheque as reais intenções das personagens e tudo fica claro: O que fazer agora? It was only a one-night thing or not?
Foi com os olhos lacrimejando, enquanto estavam sendo repassadas, na final e mais bela cena do filme, as imagens dos lugares - agora vazios - onde Jesse e Celine passaram, ilustrando o que eles chamaram de “noite dos sonhos” e tornando clara a moral do filme, que percebi: poderia ter acontecido comigo, com você… poderia ter acontecido com qualquer um.
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