Foi em uma entrevista concedida à Revista Time, em 2008, que Woody Allen não só desconstruiu sua persona neurótica frente ao entrevistador, que lhe disparou 10 perguntas diretas, mas, quando perguntado se "Bons artistas copiam, grandes artistas roubam ideias", respondeu que é um ladrão sem-vergonha e que roubou do cineasta sueco Ingmar Bergman e de outros vários artistas e pensadores, ideias e conceitos que o ajudaram a se definir como diretor. Sarcasmos à parte, o cineasta das neuroses cotidianas certamente se espelhou em dois dos maiores gigantes do cinema (Bergman) e da literatura (Dostoiévski) para realizar seu filme mais amargo, Crimes and Misdemeanors, de 1989.
Woody Allen reafirma, em Crimes and Misdemeanors, sua paixão pelo cineasta sueco, tanto por abordar um drama profundo numa linha semelhante a do diretor, como pela fotografia sóbria do filme, que foi assinada, inclusive, por Sven Nykvist, com quem Bergman trabalhou em alguns filmes. A outra (nítida) influência é a da obra Crime e Castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, que se evidencia nos dilemas e questionamentos filosófico-existenciais de um dos protagonistas do filme.
Em Crimes and Misdemeanors, Allen, ao contar duas histórias paralelas que transitam entre o drama/suspense e o tragicômico, discute questões como o adultério, culpa e assassinato, temas posteriormente abordados em Match Point (2005), e se aprofunda nos dilemas morais impostos ao homem comum com uma forte, pessimista e amarga pincelada existencialista nas suas reflexões mais pungentes. Apesar do tema sério (o que nunca o impediu de fazer piadas a respeito), Allen não abre mão do humor característico de suas obras, mas é feliz em utilizá-lo de forma mais sutil e contida, em relação às suas comédias mais famosas.
Na trama, temos, de um lado, Judah Rosenthal (o ótimo Martin Landau), um famoso oftalmologista novaiorquino que vê sua vida prestes a desmoronar quando sua amante, Dolores Paley (Anjelica Houston), completamente neurótica, ameaça contar a sua esposa não somente a relação entre eles, mas também os supostos atos ilícitos da sua carreira de médico, caso ele não cumpra as promessas feitas nos últimos dois anos em que alimentaram uma paixão, ponha um fim no seu casamento e passe a viver com ela. O médico, desorientado, procura a ajuda do irmão, que se prontifica a arquitetar um assassinato para livrá-lo do sofrimento e instabilidade causados pelas ameaças da amante – o que acaba se concretizando, mas tendo uma repercussão não tão simples como ele planejava. Do outro lado, temos Cliff Stern (Woody Allen), um diretor fracassado e infeliz no casamento que, por questões exclusivamente financeiras, decide abrir mão de sua paixão, um documentário sobre o professor-filósofo Louis Levy (responsável pelas mais belas reflexões contidas no filme), para dirigir um filme sobre o seu cunhado, Lester (Alan Alda), um bem-sucedido, pedante e medíocre produtor de cinema, que ele, por sinal, detesta. Durante a produção do filme, conhece e se apaixona pela produtora Halley Reed (Mia Farrow), que se interessa pelo seu desejo em realizar uma série de TV sobre o filósofo que Cliff idolatra. Ambas histórias tem o adultério como pano de fundo e por mais que elas acabem se cruzando em determinado momento do filme, não é só isso que elas tem em comum.
Reflexo claro do momento mais sombrio da sua carreira, Woody Allen levanta, aqui, de forma madura e séria, questões que geralmente aborda numa perspectiva mais humorada, irônica e menos dramática. Principalmente pelos dilemas morais enfrentados por Judah (o oftalmologista adúltero que tem uma “família perfeita” e uma carreira bem-sucedida e respeitada), que, diante da culpa e sofrimento após a morte da amante, acaba se reafirmando como um homem cético e pessimista. São com os dilemas de Judah que as reflexões do longa tomam forma, sobretudo, para quem compartilha da visão amarga de que não existe sentido algum na nossa existência e que, na verdade, somos nós, no decorrer de nossas vidas e diante da complexidade de nossas escolhas, que vamos adicionando sentido a ela (“Somos feitos das nossas escolhas morais, independentes de Deus”, diz o filósofo Levy em uma das passagens do filme). Essa percepção humanista é brilhantemente ilustrada quando Judah, ao sucumbir a velhos valores religiosos aprendidos na infância, termina por perguntar a si mesmo onde está esse tal Deus que tudo vê e que não o puniu pelo crime que cometeu. Como se perguntasse, desencantado, qual a relevância e significado dessa conduta moral impetrada por deuses e religiões se eles parecem fechar os olhos e permitir atrocidades como o assassinato. Allen recorre a flashbacks para ilustrar não somente os momentos de Judah com sua amante, mas para resgatar lembranças da infância da personagem, quando sua formação religiosa ia se enraizando, a exemplo da frase proferida pelo pai de que “Os olhos de Deus tudo vêem”. Um desses flashes é memorável e, até, divertido: quando, ao visitar a casa onde morou com os pais, Judah “volta ao passado” e interage com os seus patriarcas, que discutem religião e política durante um jantar em família, sobre as implicâncias morais de um assassinato, mostrando, aqui, o bom e velho humor de Woody Allen, bem a la The Purple Rose of Cairo (1985) e Deconstructing Harry (1997).
Por outro lado, a boa sacada do cineasta foi, como paralelo, contar uma história que acaba, num sentido muito mais metafórico do que a própria questão da traição, se aproximando àquela do oftalmologista adúltero e “amoral”. Trata-se dos dramas enfrentados pelo personagem Cliff (Allen), que mesmo disparando algumas pérolas como “A última mulher em que penetrei foi a Estátua da Liberdade” e garantindo o humor na medida certa para dar equilíbrio ao filme, também é um personagem trágico e frustrado. Cliff, além do casamento infeliz e de dirigir um documentário sobre o cunhado medíocre que tanto detesta, tem de lidar com uma série de adversidades na sua vida. Como o fato de idolatrar um filósofo que, apesar de celebrar a vida e o amor, acaba cometendo suicídio; e o de se apaixonar por uma produtora de TV doce, inteligente e que corresponde aos seus anseios artísticos e filosóficos, mas que prefere, para a sua surpresa (e do espectador), ficar com o seu cunhado, desconstruindo, portanto, os seus ideais românticos. É o olhar de um cineasta documental, que pretende retratar a vida como ela é (um paralelo à metáfora do “olho que tudo vê” do Deus da outra história), agora comprometido (ofuscado) diante dos infortúnios e ironias da vida.
A criatividade do Woody Allen também entra em cena nos momentos mais divertidos do filme. Isso se vê quando ele, como uma forma de associar as tramas paralelas e interligar as narrativas, utiliza, nos cortes de uma história para outra, cenas de filmes clássicos que remetem diretamente aos diálogos da história anterior. Como quando após Judah e seu irmão discutirem a “viabilidade moral” do assassinato da sua amante, haver um corte direto para uma projeção antiga assistida por Cliff e sua sobrinha, onde os atores estão conversando também sobre um assassinato. Sâo esses momentos, por sinal, em que Cliff e sua sobrinha vão a sessões de cinema, onde ele dá lições “valiosas” para a esperta menina, os mais agradáveis e divertidos do filme. Allen, ainda, faz uso de uma trilha sonora refinada – o que também é característico em seus filmes – com música clássica, no caso, Franz Schubert, em momentos certeiros do filme, o que acaba resultando num casamento magnífico entre fotografia-som, já que a música de Schubert soa apropriadamente trágica durante as cenas fotografadas por Sven Nykvist.
Muito mais amargo do que estamos habituados a ver, Crimes and Misdemeanors funciona como uma síntese da carreira irregular do Woody Allen – cheia de acertos e erros, por combinar o suspense ao tragicômico com bastante sucesso. O filme, um dos mais peculiares e maduros da sua trajetória, é um exemplo fiel da magia do cinema alleniano e também é, sem dúvida, um dos melhores de toda a sua vasta filmografia, que junto a outras obras-primas com contornos mais sérios, como Hannah and Her Sisters (1986) e Match Point, o consolida como um dos mais consagrados diretores da mais alta estirpe do cinema autoral contemporâneo.
“Durante toda a nossa vida, enfrentamos decisões penosas, escolhas morais… algumas delas têm grande peso; a maioria não tem tanto valor assim. Mas definimos a nós mesmos pelas escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total de nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com nossa capacidade de amar, que atribuímos um sentido a um universo diferente. Assim mesmo, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até encontrar prazer nas coisas simples, como sua família, seu trabalho e na esperança de que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior” (Levy)
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