O mundo é tão vil e corrupto que o ato de desconfiar de boas intenções se tornou, ao longo do tempo, um forte mecanismo de defesa. Somos bombardeados tão impiedosamente por notícias e programas com artistas autopromoters travestidos com o bom-mocismo/bom-samaritanismo tipicamente global, que nossa incredulidade se transformou numa poderosa arma para combater os falsários de Calcutá e nos proteger de suas teias sedutoras e viscosas.
Daí me deparo com o documentário Lixo Extraordinário (Waste Land), da britânica Lucy Walker, sobre o projeto do artista plástico brasileiro Vik Muniz de trabalhar no maior aterro sanitário da América Latina, no Jardim Gramacho, para, com a ajuda dos catadores de lixo reciclável da região, transformar o lixo em arte e, como consequência, transformar a vida daquela comunidade. Instintivamente, começo a refletir sobre até que ponto as intenções artísticas do Muniz caminham lado a lado com o interesse em mudar a vida daquelas pessoas sem que isto soe muito autoindulgente ou superior da sua parte. Um erro, talvez.
Analisar Lixo Extraordinário sob essa ótica, ainda que de forma instintiva, seria tarefa desgastante e, talvez, até infrutífera. Isso porque analisar os reais objetivos do artista (ou sua arte em si), além de tarefa ardilosa e que envolve certos pessoalismos, me desvirtuaria do que há de mais formidável no documentário da Walker: o poder transformador da arte na vida das pessoas.
Deixando de lado, portanto, o aspecto filme-denúncia do documentário, a obra do(s) artista(s) em si e as reais intenções do seu idealizador, mas focando na arte como poderoso instrumento transformador, Lixo Extraordinário é feliz ao mostrar como a proposta do artista plástico Vik Muniz tem desdobramentos diferentes para cada um dos catadores do Jardim Gramacho que foram escolhidos para o projeto. E não só para eles.
Para alguns, o trabalho idealizado pelo Muniz – e realizado por eles durante o processo de criação – conseguiu resgatar suas dignidades enquanto seres humanos, colocando-os num estado de reflexão sobre suas potencialidades, o que tornou todo o projeto bastante humano e transformador. Para outros, como o Tião, Presidente da Associação de Catadores, o reconhecimento decorrente do projeto traria uma mudança que viria através da transformação social, da melhoria da qualidade vida e das condições de trabalho da categoria. Do outro lado, porém, existiam aqueles que, além dessa dicotomia mudança interna/externa, alimentaram a ilusão de que tudo aquilo os tiraria da barbárie, os tornaria famosos e os faria, instantaneamente, melhorar de vida – revelando, aqui, a faceta “cruel e ilusória” do projeto do Muniz.
Sabiamente, ao preferir não adentrar com profundidade em discussões de cunho ambiental e decidir focar suas atenções nas relações dos catadores com aquele ambiente, nos seus principais anseios e, sobretudo, no que é estar em contato com um conceito tão “novo” para eles como a arte, Lucy Walker coloca Lixo Extraordinário fora da vasta produção documental “ambientalóide” que tem sido lançada nos últimos anos e dá ao documentário um aspecto muito mais humano. O único problema, nesse sentido, foi ela ter recorrido, em duas ou três cenas, ao sentimentalismo, recurso fácil e geralmente dispensável.
O grande mérito de Lixo Extraordinário, que foi premiado em vários festivais e também indicado ao Oscar, é mostrar com bastante sensibilidade o envolvimento dos catadores durante todo o processo – da criação ao reconhecimento final. O filme emociona e inspira. Afinal, não há jeito: é a arte mudando vidas e catalisando o que de melhor existe dentro das pessoas e isso sempre será bonito de se ver.
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