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Críticas

Cineplayers

Olhando para o abismo.

6,5

Abismo Prateado, o novo filme de Karim Ainouz, foi exibido na noite de ontem pela Quinzena dos Realizadores. Ele, que já tinha exibido seu Madame Satã (2002) na mostra Um Certo Olhar de 2002, volta a Cannes com obra baseada na música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque. Para além da bonita sessão, que contou com a presença da equipe, a sensação é de um estranho incômodo em relação ao filme, como se algo lhe tivesse escapado por pouco e quem sabe lhe daria uma força que em vários momentos tateia, mas que não consegue realizar plenamente.

A começar pela própria relação com o material de origem: antes de lhe ser ou não “fiel”, o que, sabemos, está longe de ser uma necessidade, ao assumir para si uma ligação tão direta com a música (está presente diretamente no filme, além de sempre colado à mesma em sua divulgação) acaba por inevitavelmente trazer para sua apreciação a presença sólida da canção - que é em si uma narração, um relato. Nesse sentido essa negociação não parece bem realizada: o filme nem se autonomiza e se liberta de fato (embora ensaie fazê-lo), nem tenta dar conta das ambiguidades da narrativa profundamente melancólica da personagem da música.

Pelo começo: o filme nos mostra o presente, lida – inclusive com muita competência – com os momentos imediatamente anteriores e posteriores ao abandono empreendido por Djalma (Otto Jr.), casado com Violeta (Alessandra Negrini), a quem resolve deixar depois de anos de casamento – notícia é dada por meio de uma mensagem de telefone celular. Ao acompanhar o instante e o impacto emocionalmente avassalador que a mesma causa à personagem, o filme consegue construir seus mais marcantes momentos, tanto em função do grande trabalho de Negrini ao interpretar alguém cuja inteireza se vê em um segundo pulverizada, se transformando num espectro a vagar pelos espaços, quanto obviamente pelo cinema que Aïnouz realiza ao acompanhá-la em seu trajeto.

Em descida vertiginosa ao abismo (porque prateado, não se sabe), tudo o que circunda Violeta se resignifica, de seu apartamento e seu filho – antes expressões do sonho, agora materialização e corporificação do pesadelo – à própria cidade, inteiramente outra: Violeta precisa se mover, ainda que não se saiba para onde e o por que; ela é um corpo como que sendo levado, ao sabor da contingência do movimento da cidade, agora morada dos corpos e afetos estilhaçados e palco para o encontro que pode (pode?) de alguma maneira mudar as coisas.

Estranhamente, justamente quando toma um novo caminho, distanciando-se radicalmente da matriz a qual se filia, Karim opta por trazê-la diretamente, tanto na voz do personagem que a cantarola, quanto via inserção direta na banda sonora, o que, ao contrário de criar um lugar poético para resignificação de seu sentido (sua clara intenção), acentua a já comentada distância das duas narrativas: em Olhos nos Olhos, a voz fala de um passado distante, alguém que amargamente se põe a cantar o quão recomposta já está, sem perceber que a própria necessidade de afirmação é um grito de saudade dolorida, um intenso e triste cantar de uma ferida irremediavelmente aberta. Depois de tantas águas, tantos homens, a casa é sempre sua, e ouvimos na canção: longe de casa, e sequer capaz de reconhecê-la como tal, o que temos é uma personagem que olha para o abismo. E, diz Nietsche, quando olhamos para o abismo, ele nos olha de volta: em Abismo Prateado há, em algum lugar, um grande filme sobre isso.

Visto no Festival de Cannes 2011.

Comentários (6)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 28 de Abril de 2013 - 09:11

Alessandra Negrini é um espetaculo,seja o que for já dá vontade de ver.
Mesmo sendo musica de Chico Buarque !

Lucas Castro | domingo, 28 de Abril de 2013 - 12:20

Dois anos esperando esse filme e, como esperado... não chegou aqui 🙄

Patrick Corrêa | terça-feira, 30 de Abril de 2013 - 22:27

O penúltimo parágrafo é o melhor trecho da crítica, com a qual não concordei no geral.
Negrini arrebenta e o filme é de uma lindeza quase sempre silenciosa.

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