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Aurora

(Sunrise: A Song of Two Humans, 1927)
8,7
Média
289 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Uma canção sobre dois humanos

10,0

Se o ponto central dos dramas de F.W. Murnau sempre foi o amor, seu entorno está todo estruturado nos obstáculos que tentam impedi-lo de se concretizar. Esses obstáculos incluem pressões sociais e econômicas, conflitos de ordem mundana e divina, falta de sintonia do casal em suas ambições de vida, e o afastamento físico e espiritual que pode existir no distanciamento geográfico: enquanto o campo e o interior abrigam a pureza e a inocência da relação, a malícia da cidade grande se revela uma ameaça capaz de corromper os corações apaixonados. Entre um lado e outro do mapa, o homem e sua natureza errante e ambiciosa, assim como a mulher e sua natureza mais emocional, se encontram perdidos em busca de um ponto de convergência.

Existe algo de muito espiritual e quase bíblico nas relações entre o homem e a mulher dos filmes de Murnau, quase como que uma releitura da história de Adão e Eva, que vivem em um idílio isolado, puro, intocado, e que logo são corrompidos por uma maldade que vem de fora e lhes tenta com promessas de algo maior. A ambição que antes não existia nesse meio rural de pureza e conforto logo desperta como uma chama e ameaça aquela atmosfera de felicidade genuína, como vemos em O Pão Nosso de Cada Dia (City Girl, 1930) e Tabu (idem, 1931). Já em Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, 1927), seu trabalho mais famoso e vencedor de cinco estatuetas do Oscar, esse fator externo se materializa em uma serpente moderna: a mulher da cidade, que com sua sensualidade e modos mais desinibidos atrai o desejo do homem pelos prazeres mundanos até chegar ao ponto de convencê-lo a se livrar da esposa.

O que antes era literalmente preto no branco se revela um filme de camadas mais elipsadas e de repente não temos mais confiança nesse amor entre marido e esposa. Se a princípio ele repudia a sugestão de assassinar a própria mulher com quem tem um filho, logo ele começa a amolecer suas convicções diante da insistência da amante. Murnau traduz essas variações morais através das técnicas que trouxe do expressionismo alemão para o cinema americano: o contraste de luzes e o uso do preto e branco pontuam os altos e baixos no humor e caráter dos personagens, de modo que os encontros com a mulher da cidade se passam sempre à noite, em cenários mais lúgubres, assombrados, que se valem opostos dos momentos familiares, diurnos, solares. Enquanto as mulheres ocupam cargos categóricos dentro desse cenário, sendo a amante a personagem da noite e a esposa a figura familiar das manhãs, o homem transita como uma figura de moral dúbia entre um extremo e outro, perdido entre suas ambições e responsabilidades, desejos e compromissos.

Os contrastes visuais próprios desse estilo expressionista emprestaram ao cinema americano uma complexidade moral que não era tão comum à época. Personagens antes divididos em categóricos papéis de mocinhos e bandidos logo começaram a apresentar variações de caráter, como reflexo de um cinema menos ancorado em contos morais conservadores e mais interessado em refletir uma sociedade construída em cima de preceitos sociais, políticos e religiosos, mas inevitavelmente composta por seres humanos errantes e imperfeitos, capazes tanto do amor quanto da morte – um verdadeiro desafio para os atores do cinema mudo, que na carência dos diálogos precisaram lapidar sua mimese de forma a abranger os contornos mais sutis e ambíguos para esses personagens (algo de Janet Gaynor e George O’Brien fazem tão bem somente com o olhar). Com a expansão das grandes metrópoles e o avanço da indústria e tecnologia próprios desse início sangrento de século, a noção de um indivíduo corrompido pelo seu meio violento e desigual de repente atraía a empatia do público. A cena em que o casal está dentro de um ônibus que o leva do campo à cidade, passando por cenários que vão abandonando o bucólico em sentido ao caótico, reforça essa noção de transformação socioeconômica tão avassaladora que definiu todo o século XX.

Mas o que prevalece em Aurora não é a corrupção, mas sim o caráter eterno e espiritual do amor. Após quase assassinar a esposa e vê-la fugir para se salvar, o marido se dá conta de tudo que arriscou perder e então se livra do feitiço da ambição e da luxúria, descobrindo-se ainda apaixonado por sua família. A busca dele pela cidade, atrás da esposa assustada e magoada, é filmada por Murnau através de técnicas simples, mas muito poderosas, que reforçam a beleza metafísica do casamento e do amor que os une. Uma vez reencontrados e reconciliados, eles vagam pela cidade e são captados através de inúmeros travellings que distorcem e tiram o foco do caos urbano e centralizam o casal unido, chegando ao ponto de paralisar o redor para o momento do beijo. Os bondes e pedestres passam não ao lado deles, mas através deles, sem conseguir atingi-los, agora que o laço entre eles se restaurou mais forte do que nunca. Poucas sequências na história do cinema são capazes de se igualar em beleza e impacto visual quanto esses momentos em que as duas figuras do campo, simplórias em sua inocência, se aventuram pela correria efêmera da cidade e ainda assim permanecem intocadas pelo mal que antes ameaçava separá-las.

O terço final conclui muito bem toda a ideia de Aurora: embora saiam vitoriosos dos obstáculos mundanos, o casal ainda corre o risco de se perder quando diante da natureza e do divino. O pecado volta para cobrar seu preço e agora o que enfrentam é uma tempestade impiedosa que leva embora a esposa. Novamente no limiar da perda e castigado pela culpa, a luta do nosso personagem passa a ser de ordem espiritual, uma vez que Murnau novamente mergulhou seu universo na escuridão de uma natureza que antes era tão solar e feliz. O caminho de retorno ao Éden, de volta ao paraíso perdido, se configura como um acerto de contas necessário e urgente para o restabelecimento da noção de família e amor, nessa que é uma das mais belas odisseias cinematográficas. Como o subtítulo do título original aponta, é uma canção sobre dois humanos e o tempo todo Murnau narra esse poema ritmado para que eles possam não apenas se reencontrar, mas principalmente voltarem a ser um. A conclusão reforça o que o cineasta e crítico francês François Truffaut elegeu tão corretamente certa vez: Aurora é o filme mais belo do mundo.

Comentários (2)

Caio Lucas | segunda-feira, 28 de Setembro de 2020 - 23:15

Texto muito bom.

Luís F. Beloto Cabral | terça-feira, 29 de Setembro de 2020 - 01:41

Se você fosse sincera
Ô, ô, ô, ô, Aurora
Veja só que bom que era
Ô, ô, ô, ô, Aurora

Se você fosse sincera
Ô, ô, ô, ô, Aurora
Veja só que bom que era
Ô, ô, ô, ô, Aurora

Um lindo apartamento
Com porteiro e elevador
E ar refrigerado
Para os dias de calor
Madame antes do nome
Você teria agora
Ô, ô, ô, ô, Aurora

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