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Críticas

Cineplayers

Um filme de personagem.

8,0

Logo no primeiro minuto, o diretor John Michael McDonagh declara que O Guarda é um filme de personagem. Música ruidosa, decupagem e edição frenéticas, um carro cheio de jovens tresloucados, tudo isto indo ao encontro do sargento Gerry Boyle (Brendan Gleeson), marcado pela calma inquebrantável. Essa oposição apresenta de forma simples o objeto central da obra, pois todas as outras quebras de expectativas dar-se-ão para estabelecer o comportamento do protagonista.

No oeste da Irlanda, Aidan McBride (Rory Keenan) vem de Dublin para trabalhar como colega de Boyle. O sargento é debochado e aparenta desleixo, já que passa boa parte do tempo bebendo e fazendo sexo com prostitutas, ao passo que McBride é um exemplo de corretude. Enquanto isso, os traficantes de drogas Francis Sheehy (Liam Cunningham), Liam O’Leary (David Wilmot) e Clive Cornell (Mark Strong) aparecem na região, e o agente do FBI Wendell Everett (Don Cheadle) tenta se aproximar do sargento Boyle para encontrar os criminosos.

Apesar da impressão que o trailer passa, o filme não traz discussões sobre racismo. Embora o sargento diga que "o racismo faz parte da minha cultura", McDonagh mantém o pacifismo até mesmo no contato direto entre Everett, que é negro e americano, e os moradores locais. As piadas ("Eu achava que só negros eram traficantes de drogas") sequer carregam a ousadia moral do humor... imoral, pois se assumem como tal dentro da narrativa. Essa leveza (muito bem-vinda em uma comédia) parte do protagonista.

E isto leva à questão: como apostar em um filme de personagem, sem que todo o conjunto fique sujeito à irregularidade de uma única construção? A resposta está menos no uso de todos os elementos como contrastes à personalidade de Boyle, como já citado, do que na autoconsciência do personagem. Depois de causar um rebuliço no briefing sobre os traficantes, o sargento se limita a dizer "estava só brincando, garoto. Não estava falando sério", dando o primeiro sinal: ele se comporta com a autoconsciência de ser uma ficção.

Neste caso - e outros em que Boyle simula um racismo inexistente, ou quando acaba com um milkshake na frente de Sheehy para comunicar sua tranquilidade -, ele está interpretando, ou ao menos apresentando sua própria personalidade como se fosse um personagem - esta distinção, nos limites do filme, é quase redundante. É uma ótima resposta de McDonagh ao questionamento do parágrafo acima.

Embora pareça um pacifismo covarde, a índole zombeteira do sargento acaba tornando tudo mais divertido. Depois de piadas de moral extremamente duvidosa, ele diz que era brincadeira, e faz questionar por que diabos causou tanta comoção para começo de conversa. Além disso, não é apenas por essas vias que o protagonista dá a entender que reconhece sua identidade ficcional - e, aí, o filme ganha uma dimensão incrível.

Em certo momento, após receber um tiro no braço, Boyle examina o ferimento e murmura para si mesmo "foi de raspão", um baita clichê providencial. Ele só diz isso porque confirmou: ele é um personagem, e tem uma função narrativa que ainda não foi cumprida. O final "aberto" da trama nada mais é que o melhor momento dessa consciência metalinguística, pois a missão de Gerry Boyle se lhe é proposta e cumprida de acordo com os interesses da narrativa.

Everett também ajuda a ilustrar a proposta de McDonagh. O agente é visto como incorruptível, já que se trata de um americano idealista, mas ele está alheio a esses estereótipos - ou seja, não conhece a figura à qual é associado. E enquanto Cheadle retrata bem a reação ora determinada, ora atarantada de Everett, a construção de seu personagem merece elogios também por não recair na saída fácil desta ou daquela "falha" de caráter, método tão costumeiro para escrever indivíduos certinhos em comédias.

McDonagh, apesar da precisão com a qual usa diálogos para encaminhar cenas (como quando Cornell discute qual o sentido de um suborno se ele tivesse oferecido uma quantia menor que a combinada), tem dificuldades em passar para falas expositivas. Cada explicação vem em alto relevo, falhando em diferentes graus, mas sempre falhando, em se situar organicamente na narrativa. Já sua escolha de alternar registros (composições elegantes, câmera na mão, tomadas aéreas) é um modo óbvio de estabelecer a imunidade de Boyle às variações de tensão à sua volta.

Não obstante, O Guarda é um exemplar hilário do gênero, e se insula entre os filmes de personagem com um protagonista que sabe que é um construto narrativo, e leva essa certeza até as últimas consequências. É uma gratificante problematização dos tecidos ético e funcional dos homens ficcionais do cinema.

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