Olhar para a filmografia de Ken Loach é jogar luz sobre obras com predileção para a temática político-social, principalmente se pegarmos um recorte mais contemporâneo, que aborde os seus filmes mais explícitos nesse teor, como o Ventos da Liberdade, vencedor da Palma em Cannes, e os longas subsequentes a ele. Sempre buscando um estilo de atuação em seus filmes mais próximo do naturalismo, o cineasta britânico não esconde que uma vertente é cara ao seu cinema, aquela que busca explorar as mazelas da classe operária e da sociedade como um todo, vivendo ela com dificuldades nos mais diversos âmbitos. Econômico, representativo, moral... As crises se abatem sobre o corpo de indivíduos no cinema denúncia de Kenneth, primeiro nome completo do diretor, de tal forma a causar comoção na plateia, porém nunca com maneirismos.
O retrato de Loach é sempre bem cru e sutil. É recorrente atestar isso, uma vez que pegamos como exemplo a obra em análise. Kes é um título curto, mas significativo para o que será representado em cerca de duas horas de rodagem. De início, entendemos que possa ser algo relacionado ao protagonista. Mas não. A nossa figura central mesmo é Billy Casper, um garoto que, indubitavelmente, vive à margem. Não somente do próprio seio familiar, dissociado da figura paterna, como da própria urbe. Parece não se conectar no emprego, que o faz atravessar a cidade de ponta a ponta entregando jornais, muito menos na escola, onde é motivo de chacota por seu jeito recatado. É um desenho de personagem que parece óbvio em dias atuais, mas que com a mão nada pesada de um diretor desse calibre torna-se bastante significativo como potencializador de uma fotografia de época.
A ambientação ajuda a criar um clima, ao passo que opressor, por mostrar em segundo plano as fábricas e as fumaças saindo de chaminés, também intimista, quando prioriza acompanhar Billy de perto, em seus pequenos conflitos diários. A câmera registra esses momentos que se dão nos atritos com o irmão mais velho e com a própria mãe, que tenta demonstrar carinho ao seu jeito, ainda que tudo pareça desacoplado naquela casa em constante divergência. A personagem de Jud, trabalhando na mineração, serve também ao propósito de trazer à baila a degradante e arriscada situação em que trabalham os operários, numa época em que os cuidados e as tecnologias não contribuíam para se assegurar nada.
Além do raio-x pelo lado mais trabalhista, Loach também percorre num sentido de radiografar o rígido sistema educacional britânico. Este que já fora muito bem exposto em suas entranhas pelo som Another Brick In The Wall, do Pink Floyd, num álbum bastante simbólico por esse viés crítico. Por sua vez, em Kes notamos diversas situações onde os alunos são expostos à humilhação, apanhando na palma das mãos por serem simplesmente incompreendidos em suas ambições juvenis. Por acreditarem que o caminho melhor a ser seguido é aquele da emancipação, da libertação de uma pedagogia defasada, onde a hierarquia brucutu não reserva o devido espaço para o diferente, para o plural. As emoções e o íntimo ficam preteridos pela manutenção do velho estando acima do novo. Mas não há o que fazer. O mais fresco esta aí. A voz jovem tenta ser ouvida. Loach mostra que o grito tenta, a qualquer modo, sair.
O escapismo da realidade atordoante apresentada pelo diretor está na figura do animal, símbolo de refúgio e sobriedade num caos que impera naquele microcosmo cogente e autoritário dos ideais ultra conservadores. Aos poucos, o universo adulto, o universo dos mais velhos e supostamente sábios vai se desarmando. Vemos clareamento essas ideia em dois momentos. O primeiro envolve Billy, à frente da turma, na lousa. Numa longa cena, ele conta para os colegas e para o tutor indiferente sua história com o falcão que encontrara. Com o poder da palavra e do giz, num raro momento oportuno para a fala, Billy narra algo de que se orgulha. É um relato comovente e libertador, já mais próximo ao encaminhamento final do filme, que prepara terreno para outro grande momento.
Este ocorre quando Billy leva seu professor para conhecer o animal que, em definição do próprio garoto, não é um domesticado, mas um que está sob seus cuidados. Bem alimentado, bem treinado, mas nunca preso, nunca visado para se perpetuar como um mero mascote. Billy explica para seu professor e ambos contemplam a ave numa cena marcante. É quando concordam que, quando a ave se movimenta, tudo ao redor emudece, silencia. Em síntese, a ideia é de que a natureza para Billy e sua relação com o animal são tão verdadeiras quanto a devoção a uma religião. Loach sabe articular essa ideia concatenando diálogos, alguns (excessivamente) longos, é verdade, corriqueiros mas profundamente verdadeiros, genuínos em essência. O fato de trabalhar com atores, ampla maioria amadores, colabora para que o filme pareça o mais espontâneo nos pequenos momentos. A decupagem, o trabalho de direção e o feito na ilha de edição tornam o filme bastante potente como crítica e como painel intimista a partir da ótica infantil, de pura inocência.
A conclusão é, de fato, um clímax emocional. Depois de uma confusão eclodir com seu irmão, o protagonista tenta fugir das consequências que o desentendimento causara. Como uma criança praticamente, seus impulsos falaram mais alto e não tivera culpa no entrevero com seu irmão. Entretanto, este desconta sua raiva no que havia de mais aprazível para um Billy tão sufocado, tão desencaixado. Kes é morto. Kes. A pronúncia se dá rapidamente, o sentimento era e será eterno a partir de agora. Não passará rápido como a pronúncia de uma palavra de três letras. Mas o efeito imediato é devastador para uma loachana personificação da candura. Billy tem o coração partido, mas depois de tantas humilhações que sofrera, como na cena do banho, certamente não baixará a cabeça. Tentará mantê-la erguida.
Mas, na verdade, não sabemos como será e se será assim. A verdade é que o último retrato que temos, a última imagem que fica gravada na retina antes de subirem os créditos, é de uma ave que, assim como Billy, batera asas tentando se libertar de amarras e morrera junto de seus instintos. Billy quem sabe contorne tudo isso, tal como humano que, diferentemente do animal, controla racionalmente os próprios instintos, e cresça como um adulto diferente daqueles que o ensinaram. Mas, repito, a cena final é triste. É de marejar os olhos. Tem efeito similar ao de uma lâmina que corta o coração enquanto este bombeia a todo vapor. O falcão, a terra e uma pá de cal. Simples e mórbido assim.
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