Desde o final dos anos 90, Naomi Kawase chama atenção do mundo com sua obra. Num país dominado por uma produção essencialmente masculina, propõe uma quebra desse paradigma sem que isso signifique abandonar as tradições culturais japonesas e as próprias referências de cinema do país.
A poética da cineasta se estabelece justamente no respeito ao tradicionalismo tão característico do Japão; mas, ao mesmo tempo, propõe um relato que priorize um olhar novo sobre as mais diversas questões filosóficas que permeiam a sociedade, desde o luto no premiado em Cannes Floresta dos Lamentos (Mogari no Mori, 2007), ao passar pela maturidade em O Segredo das Águas (Futatsume no Mado, 2014) até chegar na maternidade, com o seu último lançamento Mães de Verdade (Asa ga Kuru, 2020).
Apesar da importância dos temas, seu cinema é notório entre público e crítica especialmente pela estética, realmente encantadora. Além disso, não é incomum lermos afirmações como: “Kawase é capaz de criar um estilo que homem jamais poderia”. Totalmente verdade. Os planos lentos, longos e delicados permitem ao público admirar cada detalhe, por exemplo, do processo de elaboração de um dorayaki (tradicional doce japonês à base de feijão) em Sabor da Vida (An, 2015). Feminina não pelos clichês bobos impostos a uma produção de mulheres, tais como doçura, bondade ou fragilidade, mas, sim, pelo olhar de uma mulher brilhante que pensa com uma clareza assombrosa o seu tempo, o que lhe permite criar imagens absolutamente inesquecíveis na mente do espectador.
Os elementos que formam a assinatura da artista estão evidentemente registrados em seu novo trabalho. A virtuosa iluminação naturalista, especialmente marcada nos raios de sol sobre os corpos de seus personagens ou mesmo sobre-expostos sobre a tela são capazes de fechar os olhos do próprio espectador; os primeiríssimos planos em sequência, que mais parecem ter sido construídos desde o corpo até a câmera e não ao contrário, captam os movimentos das mãos com uma sobriedade espacial que podiam ser emoldurados como imagem em movimento num museu Renascentista; ou ainda, e não menos fascinante, como estabelece significado, inclusive cultural, em seus planos sobre a natureza.
Contudo, em seu trabalho de abertura de nova década, Kawase se propõe um desafio narrativo: adaptar a obra da escritora Mizuki Tsujimura. Seu texto engloba diversas camadas narrativas e temporais, algo que num livro pode ser resolvido facilmente em capítulos de diferentes flashbacks e que no cinema exige da cineasta um trabalho de edição alucinante — segundo a própria diretora, seu último filme foi o mais difícil no que diz respeito ao fazer cinematográfico. A necessidade de muitos meses de pós-produção resultam numa narratividade que se distancia do que vemos, por exemplo, em cineastas costumeiramente relacionados ao cinema da japonesa, como o tailandês Apichatpong Weerasethakul ou ainda o mexicano Carlos Reygadas, e a aproxima de seu conterrâneo Hirokazu Koreeda, mestre na construção de dramas familiares profundos, mas ao mesmo tempo envolventes e intrigantes.
O longa-metragem retrata uma mulher de classe média alta que, junto ao seu marido, resolve ter um bebê. Infelizmente, o jovem descobre-se infértil. Surge então na vida do casal a possibilidade de adotar uma criança por meio de um programa comum no Japão de adoção humanizada. O país vive uma crise de fertilidade, portanto o governo apoia iniciativas que visam a auxiliar mulheres que estão grávidas, mas não desejam a maternidade. Nesse caso, conhecemos um programa no qual essas mulheres isolam-se numa ilha em Hiroshima até o nascimento da criança, quando deixam os recém-nascidos com a sua nova família adotiva.
A incursão narrativa do filme se dá no interior de todos esses microfragmentos contidos no processo da adoção, focando, claro, sempre as duas mulheres protagonistas. A mãe biológica e todo o seu drama familiar pela gravidez repentina aos 14 anos, o rechaço do namorado que parecia ser o grande amor, até todo o desenrolar coletivo de recepção no local onde as outras mulheres também grávidas esperavam para doar os seus filhos a famílias desconhecidas; e, por outro lado, a mãe adotiva que teve de suportar a inicial desconfiança sobre sua fertilidade, as incertezas sobre a relação e os seguidos desafios dos primeiros anos como uma verdadeira mãe.
A sobriedade realista da diretora em registrar esses momentos entre o doar e o receber dessa vida deixa o espectador permanentemente com a sensação de que está diante de um documentário, marca também vista nos cineastas anteriormente citados. A constante mudança de direção da narrativa, por outro lado, surpreende e desperta para um novo acontecimento. Os desequilíbrios sociais dos personagens estão guardados no silêncio. O filme cria uma relação pessoal destes com o espectador, trocam ali os seus pensamentos mais secretos, e geram conflitos: "O que eu faria nessa situação?" A escolha pelo silêncio no ato de um possível erro permite ao público pensar sobre aquela escolha. A víscera da reflexão pela atitude menos indicada registra-se, por exemplo, num contraplongée focado no rosto da mãe biológica que telefona secretamente, quando tudo indica a não fazer essa determinada chamada.
Todas essas atitudes que mudam o rumo da história dessas pessoas recebem juízo de valor por quem quer julgar cada uma delas. Kawase não está propondo julgamentos, o seu interesse está no processo das ações, em construir narrativamente essa passagem. Escolhe relatar em imagens como esses caminhos que nunca tiveram nenhuma relação encontram-se no momento de troca que é obviamente fundamental às duas, e supostamente perderiam completamente o laço nesse mesmo momento; porém, isso é obviamente inquebrável, já que há ali duas verdadeiras mães.
É bom ressaltar que definir Kawase como uma cineasta moderna não quer dizer que ela despreza a tradição, mas, sim, que ela não é nada conservadora. Quando escreve um caminho distante do mundo agressivo que usa a imagem para apontar a culpa, e não para compreender as ações humanas, dialoga diretamente com o cinema antibélico de Kon Ichikawa, e afirma que não atacar, mas tocar uma harpa em plena guerra, e ouvi-la, é vencer com o ato mais subversivo de todos. Há uma outra forma de viver o mundo, mais humana, coletiva e harmoniosa, sem que isso signifique abrir mão de tudo e retirar-se ao isolamento.
Alguns podem tachar o trabalho artístico da realizadora como um cinema apolítico, se é que isso é possível, tremenda falácia. Kawase sempre deixa a sua posição. Isso fica evidente em Mães de Verdade (2020) quando, numa cena, a mãe biológica se revolta e responde agressivamente, em plena mesa de jantar, à la Ozu, contra um familiar que insinuou fazer qualquer tipo de brincadeira de cunho machista com ela e suas companheiras.
Num filme que é sobre um rito que é exclusivamente feminino, toma o lado das mulheres, das mães, o seu lado, sem separá-las, por classe, idade ou percepções culturais. Por mais que a sociedade faça um enorme esforço para esquecer e determinar padrões, mesmo nesse ato naturalmente dado às mulheres, Kawase afirma que não haveria a continuidade da vida se não fosse as seguidas vitórias das verdadeiras mães.
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