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Papicha

(Papicha, 2019)
7,4
Média
18 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Elas por elas

8,0

A diretora Mounia Meddour abre seu filme com duas de suas personagens em fuga, correndo até um carro, trocando de roupa em movimento, até percebermos que essa movimentação será a de suas personagens em toda duração. Uma espécie de negação da realidade que está sendo colocada em prática a partir daquele momento, meados dos anos 1990, no início da implementação do estado islâmico na Argélia e da mudança que isso provocou na sociedade, com foco no feminino. Esse constante ato de fugir para o lugar da celebração da feminilidade parece repetir que esse é o destino daquelas mulheres a partir de agora, buscar pelo feminino em cada ação.

Depois da tensa cena inicial, elas desaguam suas energias na pista de dança de uma boate, que as recebe sem julgamentos. A liberdade de expressão experimentada nessa cena precede todo o movimento contrário que será constantemente perpetrado contra as personagens, especialmente a protagonista Nadjma, codinome Papicha. Esses espasmos serão repetidos mais tarde, como no encontro na praia, nos momentos de desconstrução entre as amigas e no desfile que antecipa o desfecho; tais cenas são necessárias pra se observar o que se está perdendo naquele quadro apresentado.

Existe uma contradição poético-narrativa na apresentação da protagonista que é muito eficaz. Nadjma faz faculdade com as amigas, mas sua realização é como costureira, seu sonho é se tornar estilista e seu talento é concreto. A contradição a isso é o regime repressor entrando no país prestes a (entre outras coisas) tirar a individualidade feminina com os 'hjabi', aqueles véus que cobrem toda a cabeça e que retiram qualquer predicado do indivíduo. Essas duas situações refletidas criam uma proposta observacional sobre os dois lados, tanto a libertária praticada por Papicha e suas amigas, quanto a autoritária que visa destituir essas potencialidades.

Todas as ações praticadas pelo núcleo protagonista são simbolizadas pelo roteiro, desde o jogo de futebol até a constante retirada de cartazes doutrinatórios, que moldam o caráter de Nadjma e definem a verdade narrativa buscada. "As vezes quero gritar e não posso", diz uma das personagens em determinado momento, e o espectador tinha visto cenas antes uma tragédia pessoal ser reagido com perplexidade. Quando finalmente a figura central de Papicha consegue gritar diante de um novo ato de horror, percebemos que apesar da tristeza e da revolta, o estado de consciência de Nadjma atingira enfim uma consciência libertadora do qual ela é constantemente indagada e cobrada. Enfim, livre em definitivo... Uma liberdade muito mais pura porque tão abstrata, que é o conceito real do termo. 

Mounia permite utilizar ainda seu material para produzir não necessariamente um peça de mercado. Trabalhando uma montagem delicada em acréscimo a um sistema de tensão crescente, a realizadora não perde a mão sobre momentos de contemplação e até lirismo, assim como encontra espaço para homenagear um dos mais incompreendidos filmes de Robert Altman, Prêt-à-Porter, em uma sequência que é a um só tempo vibrante e extenuante. Trabalhando com uma atriz tão inteligente como a jovem Lyna Khoudri, que aproveita cada nuance de sua personagem, a diretora constroi uma bela parceria com sua porta voz e abrange a mensagem a todos do elenco, em consonância de intenções.

Papicha é o representante argelino ao Oscar de filme internacional, mas não precisa nem pede louvações externas. A autoconsciência dos seus temas, do lugar onde pretende chegar, o faz independente e livre de armadilhas que poderiam lhe serem atribuídas, como um caráter panfletário; sua assertividade lhe faz maior do que acusações infantis. Assumindo tanto o feminismo quanto uma denúncia universalizada a respeito de práticas radicais cometidas por inúmeras parcelas da sociedade, Papicha emociona, revolta e motiva como o grande espetáculo interativo que se permite ser, com suas camadas de discussões sociais que nunca o deixam ser um produto, apenas.

Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo

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