O diretor iraniano Asghar Farhadi já tinha uma obra-prima em mãos com Procurando Elly (Darbareye Elly, 2009), mas definitivamente atraiu os olhares do mundo ao ganhar o Oscar, o Globo de Ouro e o César de Melhor Filme Estrangeiro com o primoroso A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) , além de levar também, entre outros, o Urso de Ouro de Melhor Filme em Berlim. Era de se prever que haveria uma grande expectativa em torno de seu mais recente trabalho, Le Passé (2013), com estreia marcada na Competição do Festival de Cannes. A sessão de imprensa lotou mas improvisaram uma exibição paralela em uma sala menor onde felizmente pude assistir ao filme.
Farhadi desenvolveu o roteiro de Le Passé enquanto estava em Paris. Reuniu equipe e elenco mistos (entre franceses e iranianos), numa produção França-Itália. É a primeira vez que o cineasta se aventura a filmar fora de casa. Ele opta não mostrar a Paris das luzes, da arquitetura e da beleza, mas da banalidade do trabalho diário. A maioria das locações são internas: não interessa propriamente a relação dos personagens com a cidade mas o que se passa dentro das casas, dos lares, das famílias. Além disso, a protagonista Marie – interpretada por Bérénice Bejo, que conhecemos de O Artista (The Artist, 2011) – mora com sua família na banlieue parisiense (região fora dos limites da cidade, onde vive grande parte da população que trabalha na capital).
Marie é o ponto de convergência de todas relações do drama. Os conflitos giram à sua volta: ela tem que lidar com o ex-marido iraniano, as duas filhas de outro casamento e o novo namorado, com filho pequeno e mulher em coma. Nessa conturbada costura afetiva, Marie confronta seu passado (o divórcio com Ahmad, que vem de Teerã para efetivarem a separação), seu presente (a crise com a filha e a relação com Samir, ainda casado com uma mulher em estado vegetativo) e futuro (a eminência de uma reconfiguração familiar, com o novo casamento e a incipiente gravidez). Nesse sentido, o cartaz do filme é bastante sintético: Samir, Marie e Ahmad dividem o mesmo quadro; os três estão em foco, mas cada um posicionado em um plano. Marie, ao centro, olha para cima enquanto os dois rebaixam o olhar. Apesar de seus conflitos e ambiguidades, ela é de fato a personagem que mais avança em direção à mudança, ao futuro.
Com o passar do tempo, vamos adentrando na complexidade das questões familiares, que trazem muitas revelações sobre os personagens e suas escolhas. Assim como nos filmes anteriores de Farhadi, as ações são plenas de significados e consequências morais. Ainda que encerrem desejos inconscientes, elas têm o potencial de desencadear importantes desvios e rupturas na história, que só aos poucos iremos compreender. Dessa forma, Marie é questionada em diferentes momentos do filme, e por diferentes pessoas, sobre não ter reservado um quarto de hotel para o ex-marido. Ela o instala em sua casa, a mesma que dividiram enquanto estiveram juntos, e que agora está sendo repintada. No início, justifica-se dizendo que não sabia se Ahmad realmente viria, já que sua visita precedente foi cancelada no último momento. Com o passar da trama, Ahmad entende essa decisão como um ato de vingança, por ele ter abandonado 4 anos antes a mulher e suas filhas (algo que é possível entender nas entrelinhas dos diálogos). Já Samir acusa Marie de não ter se resolvido com seu passado, ele sente na tensão latente entre Marie e Ahmad resquícios da relação que tiveram.
Ahmad é convocado não só a descobrir as mudanças na casa e na vida da família que um dia foi sua como a participar ativamente delas. Afinal, Marie parece não dar conta de tudo sozinha. A pintura da casa é interrompida por uma dor no pulso, que ela tenta esconder quando vai busca-lo no aeroporto. Vale atentar para a simbologia desse gesto de cobrir a antiga cor da casa por outra, nova e distinta. Marie está sempre alertando: “cuidado com a tinta fresca!”. O novo é ainda frágil, instável. O balde de tinta é deixado no corredor e Fouad (filho de Samir) o derruba. Não por acaso é Ahmad quem fica para limpar o chão.
Ele, de fato, desempenha um importante papel nessa complexa rede de relações: o de trazer à tona os não-ditos, os segredos, as verdades encobertas por mal-entendidos. Lembremos aqui da cena em que, para desentupir o cano da pia da cozinha, ele retira um bolo preto e fedido de sujeira que deve ter acumulado durante meses. Falta também a mediação de uma figura paterna para que Marie compreenda a dor e o conflito da filha mais velha, Lucie, que há alguns meses evita ao máximo se relacionar com ela e Samir. Ahmad é mais uma vez convocado, com seu tato e paciência, para buscar a razão de tantos desentendimentos.
Lucie feriu-se muito com a troca de maridos da mãe e tenta ao máximo impedir seu novo casamento. Marie se estressa profundamente com os conflitos que Lucie desencadeia e fuma descontroladamente, repassando suas angústias para o filho ainda em gestação. E a filha mais nova, que durante todo o tempo fica alheia às brigas que se passam ao seu lado, ao final começa a interessar-se por elas. O filme aponta, assim, para um tempo além do que somos capazes de ver, e indica que, mesmo depois do apaziguamento final, as ações continuarão a reverberar e a terem desdobramentos na vida dessas pessoas.
Visto no 66º Festival de Cannes
O filme é, de fato, outro grande acerto para o diretor. Faltou só resaltar o ótimo trabalho de todo o elenco.
Meu Deus ! Outro incrivel deste homem.
Mestre em roteiros,são tão complexos.
Assim como imaginava,seus filmes funcionam em qualquer língua,pois fala de pessoas,uma por uma,não de grupos ou social.Merece toda e qualquer babação.
Assisti Semana passada, e até agora to achando o melhor do ano. Farhadi é incrível.
Realismo ao extremo, isso sim é filme!